Como compreender o surgimento, na década de Trinta do século XX, de tantos escritores e poetas brasileiros explicitamente católicos? Os dois veios temáticos recorrentes do modernismo brasileiro — crítica à cultura burguesa e valorização das idiossincrasias regionais — de certo modo continuaram, nos anos trinta, sob novo enfoque. E, se renascia a ficção urbana, tanto a costumista como a psicológica, apareceria a seu lado uma nova corrente, tanto na poesia como na prosa, com um novo assunto, que não figurava no programa modernista: eram os problemas do pecado, da Graça e do destino eterno do homem, abordados por escritores católicos, geralmente sobre o pano de fundo da classe burguesa.
O renascimento da espiritualidade brasileira, sobretudo do pensamento católico, irrigaria um vasto território literário a partir de trinta. Essa tendência foi bastante auxiliada pela fundação do Centro Dom Vital e de sua revista A Ordem, criados em 1922 (mesmo ano da exageradamente famosa semana paulista) pelo pascaliano Jackson de Figueiredo, morto prematuramente em 1927 e principal responsável pela conversão de Alceu Amoroso Lima, que assumiria em 1928 a direção do centro e da revista no lugar de Jackson. Num país em que os principais críticos literários eram homens sem fé religiosa, ou já sem entusiasmo pela fé, a militância católica de Alceu de Amoroso Lima foi uma extraordinária novidade, de extensa repercussão.
Ainda está por ser feito o estudo definitivo da importância, para o pensamento brasileiro, do Centro Dom Vital, cujo nome era uma homenagem ao bispo pernambucano que muito lutou em sua época contra a influência da maçonaria no clero brasileiro; e de sua revista — que ecumenicamente acolhia ensaístas não católicos —, responsáveis pela criação de uma mentalidade cultural cristã disposta a discutir a realidade contemporânea e nela influir. Direta ou indiretamente, muito influenciou a corrente literária dita espiritualista, mas basicamente católica, que reunia nomes como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Octavio de Faria (cunhado de Alceu), Gustavo Corção, Plínio Salgado, Augusto Frederico Schmidt, e até o Vinícius de Moraes da primeira fase. Não se deve excluir desta lista o poeta Manuel Bandeira, que foi recuperando a fé à medida que envelhecia — até aparecer, numa de suas últimas fotos, abraçado a um crucifixo —, nem Mário de Andrade, católico que parecia não o ser.
É preciso não esquecer que esses romancistas e poetas eram contemporâneos do modernismo, mas caminhavam quase todos noutra direção, mais disponíveis a voos metafísicos do que a mergulhos etnológicos na cultura nacional, embora sofressem aqui e ali alguma influência das vanguardas europeias.
No caso de nossos “poetas em Cristo”, não tinham algo de novo a dizer, mas algo permanente sob nova roupagem. O mais uniforme desses poetas católicos foi, sem dúvida, o curitibano Tasso da Silveira, filho do poeta simbolista Silveira Neto. Também escreveu romances, dramas, ensaios, mas sua obra se encontra, infelizmente, esquecida dos editores e do público. Além de hábil manipulador das formas fixas, seu verso livre tem, nos melhores momentos, uma admirável plasticidade e um senso do ritmo próprio de quem conhece o ofício. Em certos momentos, logrou fundir o integralismo de Plínio Salgado com o versos larguíssimos de Walt Whitman. Se a dispersão neorromântica ameaça a sua produção desse período, a sua poesia retornou, nos últimos livros, com surpreendente amadurecimento, às formas fixas do início, resultando nos belos, clássicos e densos poemas de Puro canto e Regresso à origem. Quando o melhor de Tasso for reeditado, os futuros leitores de poesia tombarão de espanto (na remota hipótese dessa espécie, a dos leitores de poesia, sobreviver aos predadores culturais desta e das próximas décadas).
Quanto a Jorge de Lima, que também foi pintor e romancista, em suas obras da maturidade dialogaria com as Sagradas Escrituras e a tradição da Igreja, extraindo delas um rico material para suas ideias e imagens, depois de uma experiência tipicamente modernista, de louvor às coisas regionais e elogio da miscigenação. O agnóstico Drummond foi um bom poeta para o “chão de ferro” do nosso tempo. Jorge de Lima, sobretudo o de A túnica inconsútil — e, de maneira velada, hermética, quase surreal, em Invenção de Orfeu — é um poeta voltado para o alto, para a eternidade, num tenso diálogo com as coisas permanentes. É isto que o poeta alagoano tinha e ainda tem a nos oferecer.
Já Murilo Mendes foi um católico progressista. Tinha pouco domínio sobre a versificação tradicional e destacou-se no verso livre, muito marcado pelo surrealismo e outros movimentos artísticos de vanguarda. Gostava de experimentar novos caminhos, e muitas vezes se perdeu na busca. Sua poesia, que se esforçou pateticamente por conciliar a doutrina cristã com o marxismo e a psicanálise, antecipou em alguns aspectos o espírito da “teologia da libertação”, o que faria de Murilo o mais palatável desses poetas católicos junto ao público acadêmico.
Augusto Frederico Schmidt foi outro grande poeta católico desse período, ideologicamente oposto a Murilo, mas com ele igualando-se no desinteresse das técnicas tradicionais do verso. Rico empresário, descendente de judeus, tinha porém em Cristo a chave e a medida de sua poesia, de cadências largamente bíblicas que ora lembravam Péguy, ora Claudel, mas que traziam a sua inconfundível marca pessoal, como, por exemplo, no uso muito criativo da repetição, de grande efeito rítmico.
Finalmente, Vinícius de Moraes, que trocaria a Congregação Mariana da juventude pelo animismo dos terreiros de candomblé. O futuro grande letrista de sambas tentou ser poeta metafísico, fez no início alguns belos poemas com cadência bíblica e inspiração cristã, mas o apelo da transcendência era demais para sua energia difusamente panteísta, de vitorioso atleta do sexo, e se encaminhou cada vez mais para o seu próprio e inelutável destino, o de poeta da MPB, cujas letras de música, a partir dos anos cinquenta, fariam escola. Uma escola sob muitos aspectos nociva, pois dava a impressão de que a poesia em vinil substituiria finalmente a poesia impressa. Foi nisso que gastou todo o seu talento: na exiguidade das letras de música, em que pôde exprimir livremente o seu paganismo afro-brasileiro. Não tinha nascido para o ar rarefeito do lirismo cristão: era prato raso demais para tão nobre sopa (para usar uma imagem do católico Cornélio Pena a propósito do agnóstico Marques Rebelo).
(Trecho de ensaio publicado na revista Nabuco)
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