Diante do Quixote, esse homem que resolveu deixar o conforto de sua casa e sair pelo mundo para fazer o bem, mesmo à custa da própria vida, como faziam os cavaleiros medievais, é inevitável pensar-se noutro “homem” que, há dois mil anos, também deixou o conforto de sua casa e saiu pelo mundo para fazer o bem, também disposto a dar a própria vida por sua causa: Jesus Cristo, modelo de todos os cavaleiros medievais e até daquele que pretendia ser a paródia desses últimos.

De certo modo, foi assim que pensou o judeu Harold Bloom, um dos críticos literários mais lidos de hoje. Disse ele certa vez do Dom Quixote, de Cervantes (que aliás considearva o primeiro e maior de todos os romances) que era a verdadeira bíblia espanhola; e Nosso Senhor Dom Quixote era um autêntico Cristo. É evidente o exagero das afirmações, mas de algum modo elas nos indicam um interessante caminho de confronto e comparação.

De fato, para alguém como Bloom, que vê as coisas de fora do universo cristão, as similitudes entre Cristo e Quixote podem mesmo ser muitas. Para começar, seriam ambos personagens fictícios, dois loucos que leram bastante e deixaram-se afetar pelas obras lidas. Jesus cresceu lendo a Torá, os profetas, os livros sapienciais, e julgou que o Messias ali predito era ele mesmo. Quixote leu vários romances de cavalaria e acreditou que poderia ser um cavaleiro andante. Ambos eram solteiros; e, em determinado momento de suas vidas, decidiram abandonar suas vidas privadas e sair pelo mundo. E não foram sozinhos: Cristo com seus discípulos, Dom Quxote com seu escudeiro. Os dois tinham por objetivo consertar as coisas tortas da vida, em nome de uma visão inegociável do que era correto e justo.

Assim pensam os atuais gentios. De forma bem diferente vêem as coisas aqueles que estão dentro do universo cristão, para os quais as diferenças logo se impõem. Jesus não era louco, Dom Quixote sim. A prova da sanidade mental de Jesus é a perfeira coerência e sabedoria do que ensinou em suas saídas pelo mundo. Um louco não construiria tanto e tão bem… Jesus sabia que era o Messias, Dom Quixote assumiu uma identidade fictícia. Jesus preparava as pessoas para um tribunal e uma justiça para além deste mundo; Quixote queria a justiça aqui mesmo, neste mundo, e não abria mãos dos louros da vitória. Jesus era a humildade, Quixote a patética soberba dos loucos. A arma de Jesus era a espada da palavra, a lança do Quixote feria e matava. Jesus via a realidade tal como era, Quixote projetava no mundo real as fantasias de sua mente. Jesus era Deus, Quixote um miserável como qualquer um de nós.

É curioso verificar como, no momento em que Descartes estava lançando as bases da filosofia idealista (expressa no cogito ergo sum; penso, logo existo; a realidade é aquilo que se pensa da realidade), Cervantes já profeticamente mostrava o engodo que estava por trás dessa visão de mundo egocêntrica, centrada nas próprias idéias (portanto, ideológica).  “Tudo o que eu digo é absolutamente verdadeiro e completo, e desenho tudo em minha mente, segundo a minha vontade.” (Dom Quixote) “Sei quem sou, e quem posso ser, se eu assim o quiser.” (Dom Quixote) O mundo exterior, para Dom Quixote, era uma projeção de suas idéias: a bacia do barbeiro era o elmo de Mambrino. “…isso que a ti te parece bacia de barbeiro é para mim elmo de Mambrino e a outro lhe parecerá outra coisa.” (Parte I, cap. XXV)

Dom Quixote, segundo Thomas Mann, queria viver da glória da própria autoglorificação. Não é o destino do homem moderno, antropocêntrico, desligado de Deus?

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