
Depois de Cristo, sempre houve duas “igrejas” caminhando paralelamente na turbulenta estrada da história, correspondentes às duas cidades de Santo Agostinho. Uma delas costuma ser grafada com inicial maiúscula: é a Igreja, expressão legítima da doutrina cristã, com pelo menos dois mil anos de vida madura, e uma longuíssima pré-história que remonta a Adão e Eva, Noé e sobretudo a Abraão, nosso “pai na fé”.
A outra deve ser escrita com minúscula e de preferência no plural, pois tem a tendência de multiplicar-se quase infinitamente. Podem ser visíveis ou invisíveis. Algumas são infiltrações anticristãs astutamente disfarçadas no corpo eclesial autêntico; outras, separam-se depois de desmascaradas e tomam o seu próprio caminho. Para conhecê-las, basta consultar uma boa história das heresias católicas: são dois mil anos de infiltrações e separações.
Hoje, mais que nunca, aquela igreja-fake infiltrada está ativa, ativíssima. Tem um timbre inconfundível, plena visibilidade e, nos últimos cinquenta anos, visto de permanência. Sua estrutura física abrange dioceses inteiras, paróquias, mosteiros, universidades, editoras, tevês. Os recursos humanos incluem “diáconos” e “padres”, “bispos” e “cardeais”, passando por “religiosos” e “religiosas” (sempre grafados entre aspas…), sem esquecer obviamente a ruidosa militância leiga nas pastorais, na mídia, nas escolas.
É notória a sua ligação com poderosas forças políticas, especialmente o socialismo latino-americano e o globalismo capitalista da Nova Ordem Mundial (ou metacapitalista, como preferia dizer Olavo de Carvalho). Dessas ideologias é que extrai boa parte de seu corpo “doutrinário”, se é que se pode considerar como doutrina o seu programa revolucionário.
A rica Alemanha é seu principal ponto de referência, mas anda bem disseminada pelos Países Baixos, na Europa latina do Sul, na Grã-Bretanha (incluindo Austrália e Nova Zelândia), nas três Américas, em especial na triste parte americana que nos toca viver: Brasil. A honrosa exceção é a África, onde a Igreja legítima parece predominar.
Não deixa de ser curioso o seguinte contraste: onde predomina a igreja-fake, o número de fiéis decresce a cada ano; no continente africano, ao contrário, aumenta a cada nova estatística.
A boa notícia é que, mesmo no território majoritariamente ocupado pela fake-igreja, a Igreja verdadeira não cruzou os braços (é a única circunstância em que a cruz não é bom sinal). Nem poderia omitir-se, pois costuma ser obediente a seu divino fundador, que mandou os discípulos irem, mundo afora, batizando e ensinando a Verdade de sempre.
Bom exemplo dessa cruzada (de braços resolutamente descruzados) é um recente episódio ocorrido nos EUA, entre final de fevereiro e início de março de 2023. Tudo começou com um artigo publicado na revista America, de jesuítas estadunidenses, da autoria do recém-nomeado cardeal Robert McElroy, em que o prelado defende a “inclusão radical”, na Igreja, de pessoas que se dizem LGBT, abrindo-lhes a possibilidade de comungar nas Missas sem confissão sacramental.
Certo bispo não gostou do que leu e reagiu com outro artigo, de timbre perfeitamente católico, publicado na respeitada revista First Things. Esse bispo era Dom Thomas Paprocki, da diocese de Springfield, que também é presidente da Comissão para Assuntos Canônicos e Governo da Igreja, na conferência episcopal americana.
Sem mencionar diretamente o recém-cardeal, Dom Paprocki recorda, entre outras coisas, mencionando o cânon 751 do Código de Direito Canônico, que heresia é “negação obstinada ou dúvida obstinada, após o recebimento do batismo, de alguma verdade que deve ser crida pela fé divina e católica”.
O fato é sério. Um bispo apontando heresias em colegas de episcopado não é coisa corriqueira, hoje em dia. No passado já o foi, principalmente nos idos — ditos sombrios — da Idade Média, como, por exemplo, o que ocorreu em certo lugar da Alemanha medieval, entre os séculos XI e XII, quando uma monja começou a dizer que recebia revelações de Deus Pai. A notícia chegou até o Papa, e o Santo Padre de então encarregou um monge teólogo de ir até lá e investigar a tal monja. Monge lá foi, conversou com a monja e os que com ela conviviam, chegando à conclusão de que a monja não cometia heresias. Essa monja, hoje, é Santa Hildegarda de Bingen, e o monge que a investigou era, nada mais nada menos, que São Bernardo de Claraval. Era assim que as coisas aconteciam sob as católicas trevas medievais.
Comentando o episódio americano, o padre madrilenho Santiago Martín concluiu que esse cardeal “já estaria excomungado, embora apenas o Papa pudesse oficializar essa excomunhão. Ele [Dom Paprocki] vai ao ponto de dizer que, se o Papa não o fizesse, ‘surgiria a perspectiva indecorosa de um cardeal, excomungado latae sententiae por heresia, votando num conclave papal’. As implicações do que Monsenhor Paprocki afirmou — sem esquecer que é um perito em direito canônico — são tremendas. A participação, no conclave, de um cardeal herege, mesmo que não tenha sido oficialmente declarado como tal, poderia resultar na invalidação da eleição do próximo Papa.”
O cardeal McElroy dirige, com ideias nada católicas, uma importante diocese católica do sul da Califórnia, com quase dois milhões de almas sob sua paternidade espiritual. Se está sob excomunhão latae sententiae, pertenceria a qual das duas “igrejas”? A com maiúscula? Ou a uma das tantas com minúscula que há por aí? Jesus disse com clareza que, quem não estivesse com Ele, contra Ele estaria. De que lado está o cardeal americano?
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