
As escolas parecem, às vezes, prisões em que alunos e professores estão encerrados no mesmo ambiente, submetidos a trabalhos forçados. Rotineiramente são obrigados a debruçar-se sobre alguma obra literária antiga, cheia de palavras fora de uso e sentimentos que soam artificiais. Para que, afinal, perder o tempo com aquelas velharias?
O tempo parece passar mais rápido quando o professor traz alguma atividade lúdica, desenvolvida em grupo, usando um método mais moderno. É até um alívio, porque ele não pode mais usar a disciplina para manter a ordem da sua audiência cativa: ou ele assume a direção da brincadeira, ou perde completamente o controle da turma.
A disciplina termina quando o poder público coloca todos dentro da escola: lá dentro, é anátema, na esteira da célebre teoria de Michel de Foucault, que vê no exercício da autoridade um instrumento de dominação para vigiar e punir os desvios da ideologia dominante. Mesmo as prisões seriam a materialização – injusta – do autoritarismo que estrutura a nossa sociedade, e por isso deveriam ser banidas. Por causa dessa mentalidade, é não apenas impossível, mas até ilegal aplicar a disciplina na escola, o que dificulta o aprendizado de qualquer habilidade que requeira treino árduo e constante.
Este modus operandi é relativamente recente na história, e inverte uma prática secular. Desde a Grécia antiga, a base do ensino era a gramática, que consistia em grande medida na leitura e interpretação dos clássicos, em geral obras poéticas. O ensino não era obrigatório – era, na verdade, um privilégio difícil de se conquistar e de se manter.
Nas últimas décadas substituiu-se o ensino calcado na leitura de obras literárias “canônicas” por outro, que explora todos os tipos de gêneros textuais – e não apenas gêneros literários – cujo objetivo é inserir o estudante no mundo moderno, preparando-o para o mercado de trabalho e para a vida na sociedade atual. A par deste abandono, vem a desconstrução do valor e da importância dos clássicos: eles seriam, antes, veículos de conteúdos ideológicos opressores. A própria ideia de uma hierarquia entre as obras clássicas e as demais deveria ser abandonada na prática, com Shakespeare e Mickey Mouse considerados no mesmo nível.
Depois de algumas gerações formadas por esta nova escola, até mesmo os professores têm dificuldades de ler obras que não sejam atuais. Como a poesia em língua portuguesa é descendente direta da poesia latina, a sintaxe de grande parte destas obras é similar à sintaxe latina – com muitos períodos e frases em ordem invertida – sendo praticamente impossível lê-las sem um treino constante.
A arte produzida pelas novas gerações, como consequência, é cada vez menos influenciada pelos clássicos. Mesmo quando querem dialogar com o passado, partem de uma visão estereotipada de gregos, romanos ou medievais. A linguagem dos escritores do passado, que não é mais absorvida, torna-se incompreensível – na língua, na mentalidade e nos valores que veiculam. Neste ponto, não só os professores, mas também os alunos não querem mais fazer qualquer esforço para assimilar algo que é radicalmente estranho à sua sensibilidade.
Deixamos de ter acesso ao conhecimento e, principalmente, à experiência acumulada de mais de dois milênios, e nos tornamos uma geração provinciana. A experiência, ao contrário do conhecimento, é intransmissível, e só pode ser absorvida por analogia. A arte é o principal veículo para enriquecer, por analogia, a experiência – porque vivenciamos, como se fossem nossas, as histórias que lemos. Não podemos compreender minimamente os povos do passado sem absorver a experiência humana transmitida por suas obras de arte, e pouco a pouco deixamos de pertencer à mesma civilização.
As línguas modernas são em grande parte resultados da criação literária. Sem um substrato linguístico comum que perdure no tempo, não há entendimento entre as pessoas – que não podem compartilhar do mesmo universo imaginativo – e a língua tende a transformar-se rapidamente, perdendo a sua unidade. Estamos testemunhando um processo de desagregação deste tipo – senão total, ao menos parcial – por simples incapacidade de ler as obras literárias que marcaram a história da literatura ocidental. Ficamos, assim, confinados nos estímulos do momento presente.
Este círculo vicioso vai levantando os muros da nossa prisão temporal, que nos mantém isolados da humanidade de outras épocas. Estamos retornando para a caverna da qual Platão nos queria libertar. Até que ponto podemos prosseguir nesta direção sem grande risco? Precisamos buscar o caminho de volta, e absorver, mesmo com dificuldade, o legado da experiência acumulada – mesmo que seja uma coleção de histórias trágicas e de autoenganos – porque é por meio delas que podemos reconhecer os nossos equívocos, e perceber a tragédia iminente que nos aguarda, se continuarmos no mesmo caminho.
[Fausto Zamboni é professor de literatura italiana na UNIOESTE, campus de Cascavel – PR. Tem dois livros publicados: Contra a escola: ensaio sobre literatura, ensino e educação liberal, pela editora Vide (2016); e A opção pelo homeschooling, pela editora Kírion (2020)]
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