
[Continuação da pequena novela iniciada aqui. Conta a história da passagem do padre paulistano Bento José Pereira pela cidade paulista de Batatais, há duzentos anos, e as encrencas que arranjou com dois fazendeiros do lugar].
UM ARRAIAL PROVISÓRIO. O novo vigário da freguesia do Bom Jesus da Cana Verde, padre Bento José Pereira, chegava para substituir padre Manuel Pompeu de Arruda, sepultado quatro meses antes, em setembro de 1820.
Padre Arruda, morto com algumas complicações pulmonares quando já passava dos cinquenta anos, não morava no povoado mas na fazenda do Retiro, de sua propriedade. Dividia a função de salvar almas com o cuidado de suas roças e de seu gado. Dava-se bem com o demais proprietários rurais, mineiros como ele, e, como muitos deles, vindo de Minas na mesma época e quase do mesmo lugar: as cidades semimortas abandonadas pelos garimpeiros e mineradores.
Depois de sua morte, três padres interinos tinham cuidado dos serviços paroquiais, antes da chegada de padre Bento. Um deles, padre José Joaquim, também se dividia entre serviços religiosos e o cuidado de suas terras na Santana, situadas um tanto longe da sede da freguesia. Com trinta e cinco anos, padre Bento não tinha roça nem gado. Mais talhado para o ensino, movia-se melhor entre livros e ideias. Ele e o preto Manuel d’Angola, dez anos mais moço, viveriam do dinheiro que viesse da caridade paroquial e da côngrua enviada pelo bispo Dom Mateus, em cujo seminário paulistano estudou e foi bom aluno.
Padre Bento sabia que tinha de se virar por ali mesmo, na rude casa paroquial, que era usada por padre Arruda quando de suas vindas ao povoado, por ocasião das estações de missas, batismos, casamentos, enterros. A morada era ruim — estava mais para rancho do que para casa —, mas considerou que levava boa vantagem sobre os pousos de tropeiros em que, durante a noite, tinha armado a barraca para descansar da longa viagem de cada dia, na Estrada de Goiás.
Em nada diferia dos demais casebres do povoado, exceto um velho catre com os paramentos litúrgicos, num dos cantos da saleta. Uma antiga e redonda tesoura de cortar hóstias fazia companhia à âmbula sobre uma pequena mesa, recoberta por uma toalha grosseira e avermelhada de pó.
Não foram fáceis os primeiros dias. Padre Bento era um homem de costumes urbanos, sem experiência do sertão. O clima, percebeu logo, era bom, mas as águas do córrego estavam mais longe que o desejável para as tarefas domésticas de cada dia. Com o passar do tempo e os primeiros contatos com os poucos moradores do arraial, confirmou sua impressão inicial de que nunca, em parte alguma, aquelas casas poderiam, honestamente, receber o título de boas casas, ou nem simplesmente de casas, porque em geral não passavam de uns esteios espetados no chão, sem forro e assoalho, quase todas sem coberturas de telhas ou repartições internas. Continuavam à vista as varas do pau-a-pique nas paredes com pouco ou nenhum reboque, em cuja massa entrava um bom tanto de bosta de vaca.
Enfim, eram aqueles ranchos que os poucos moradores do lugar possuíam para se defender do frio, da chuva, dos insetos e, sobretudo, da generosa poeira vermelha que os bons ventos do lugar equanimemente distribuíam por todos os lados e a tudo impregnavam de sua cor. A casa do comandante policial, que vivia principalmente em suas terras, tinha sido principiada fazia mais de quatro anos e ainda não tinha porta, nem repartições internas. Estas se faziam de improviso, quando ali vinha para os dias festivos com a família, trazendo consigo palhas de palmitos com que separava a sala e os quartos.
As demais construções estavam quase todas do mesmo jeito, feitas com grande mesquinhez de tamanho, altura e madeiramento. Padre Bento notou que havia ainda, espalhadas um pouco à margem do arraial, uma meia dúzia de chácaras, com cabanas cobertas de palha ou capim e quintais grosseiramente cercados de madeira, três delas até com algum pedaço de muro.
Aos poucos, foi conhecendo a rotina do povoado, que só se alterava nas temporadas de festas, principalmente o Natal e a Semana Santa, mas com vários outros “dias santos” espalhados pelo calendário. Era uma época, aquela, sem economia de feriados, todos eles religiosos, e todos devidamente comemorados com Missa e festa.
Um ou dois dias antes do início da temporada, os poucos fazendeiros que tinham casa no povoado chegavam a cavalo com a esposa, os filhos e alguns escravos. É certo que passavam esses dias bem pouco festivamente, sem requinte algum, nenhuma fidalguia cortesã — não fazia muito tempo que Dom João VI tinha retornado a Portugal —, mas, enfim, não havia outra ocasião de as mulheres mostrarem as roupas e as joias novas, compradas dos mascates que de vez em quando visitavam o arraial com seus tecidos e bugigangas, sempre reclamando da terra vermelha.
Não faltavam recursos aos fazendeiros para terminarem as casas, mas a verdade era que não se viam impelidos a isso. Havia algo que impedia o arraial de crescer e melhorar. Parecia, a padre Bento, um cenário provisório prestes a ser desmontado.
[Continua aqui].
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