A tentativa de suicídio, que se vai ler, aconteceu com o juiz de direito da comarca de uma pequena cidade aqui perto. Mais precisamente, num dos dois pequenos edifícios da cidade. O edifício, porém, era alto o suficiente para propiciar o salto livre —  e a morte líquida e certa.

Era uma cidade pequena, mas não tão pequena que já não produzisse razões de sobra para alguém, em nossa época, eliminar a própria vida.

Foi o que ocorreu com o juiz. Geralmente, os suicidas são abandonados pela própria consciência, mas não foi o que ocorreu com este. Não vem ao caso revelar, agora, os motivos da decisão, que podem ficar para outro relato. Nosso aprendiz de suicida, mais lúcido que nunca, encostou a cadeira numa janela do apartamento, trepou no batente e, como se estivesse num trampolim de piscina, atirou-se contra o vazio, que escancarada e obscenamente descerrava-se à sua frente.

Apesar de curto, foi um voo espetacular: do ponto de vista de quem estivesse na calçada oposta, o que se veria era um homem com pernas e braços bem abertos, como uma enorme garra ávida por rasgar a indiferente pele do mundo. Uma única pessoa o viu do início ao fim do salto, mas nem teve tempo de gritar, pois entre o pulo e a queda não se passaram mais que uns poucos segundos.

Escreveu alguém, nalgum lugar, que todo suicida é um exibicionista póstumo. Talvez nem todos (é sempre bom contar com exceções), mas era seguramente o caso do nosso personagem. Para ferir mais fundo a mulher ingrata ou o credor impaciente, é provável até que um e outro desesperado tenham conseguido uma breve pausa de lucidez no desespero, e filmado o próprio suicídio. Isto já deve ter ocorrido nalgum lugar do mundo, tão vasto é o mundo e tão rica a imaginação das pessoas.

Hoje, sem dúvida, um vídeo desses faria sucesso nas redes sociais da internet, como teria feito nas locadoras de filmes ou nos telejornais das tevês abertas, que eram os principais veículos de entorpecimento coletivo daquela época, duas ou três décadas atrás, quando um inesperado e obscuro juiz do interior decidiu atirar-se do oitavo andar de seu prédio.

Como será o olhar dos suicidas, no momento que precede o gesto definitivo? Pupilas brilhando ansiosas, como vidraça batida de sol? Como uma fogueira lúgubre depois que a chuva apagou a última brasa? É difícil, senão impossível, imaginar um suicida de olhar sereno. Vazio, sim: o vazio que há nos olhos das velhas estátuas gregas arruinadas pelo tempo. Sereno — da serenidade dos santos e dos místicos — jamais.

Como já dizia, três parágrafos atrás, a única pessoa que o viu lançar-se no espaço não teve tempo de gritar, apesar de ter certamente guardado para sempre, na memória, os braços e as pernas daquele homem transformado em enorme e apressada garra voadora, trescalando ódio, a caminho do chão duro e incomplacente.

O final de uma narrativa como esta seria perfeitamente previsível — ora com mais, ora com menos sangue —, se um pouco antes do homem chocar-se com a calçada o seu anjo da guarda, por ordem expressa de Deus, não tivesse chegado em tempo de corrigir (discretamente, com um leve sopro espiritual) a rota do juiz suicida, que escapou por um triz de ser o injusto assassino de si próprio. Os juízes podem dar sempre motivos para vinganças, mas não pelas próprias mãos — mãos que batem com firmeza o martelo dos vereditos alheios.

Enfim, encurtando a conversa que já vai desnecessariamente longa para tão triste assunto: um juiz, de paletó aberto e gravata afrouxada, como se fosse o mais hábil trapezista do mundo, foi amparado pelos fios da rede elétrica e caiu misteriosamente amortecido perto da sarjeta, quebrando duas costelas, se tanto (quase nada para quem pretendia quebrar tudo e mais um pouco). Para o espetáculo ficar completo, só faltaram os aplausos.

Aqui deve ser aberto um flashback absolutamente necessário: o juiz, desde muitíssimo antes de jogar-se do alto, já não acreditava em Deus e nas coisas sobrenaturais. Era um ateu confesso. Depois do milagre nos fios, passou subitamente a crer: foi um segundo e inesperado milagre.

Mal admitido, porém, no círculo privilegiado dos que creem, posicionou-se imediatamente na oposição. Seu primeiro ato de crente foi contra o objeto da própria fé. Todos os que presenciaram o milagre — não foram poucos — garantiram que, assim que terminou o passeio aéreo e ele se viu, novamente, lúcido e vivo, entre pessoas vivas e lúcidas, proferiu uma violenta blasfêmia contra o Deus que ousara contrariar o seu livre arbítrio. O Deus, que antes não existia, passou a existir como adversário. E amaldiçoou o anjo atrasado, que bem podia, se quisesse, ter surgido antes e evitado aquele espetáculo ultrajante: o projeto amorosamente concebido, e desgraçadamente falhado, daquela inútil viagem vertical até o rés do chão (“pois”, pensou ele, “já que os anjos existem, eles devem conhecer mil truques para todas as situações”). Mas preferiu atrasar-se para o expor à suprema injustiça de continuar vivo após aquele espetáculo circense, em que o notável trapezista súbito se transformava no maior de todos os palhaços.

É preciso dizer que doíam bastante as costas do juiz, mas foi conduzido, imediatamente, ao único hospital da cidade, onde passou alguns dias amargando as costelas quebradas e, sobretudo, o humilhante vexame a que tinha sido exposto.

Seria um motivo mais que suficiente para buscar novamente o suicídio. O fato, porém, é que mudou de ideia. Ou de desespero: decidiu que era melhor ruminar vivo as humilhações do destino, do que passar por semelhante vergonha diante das pessoas. É certo que não faltavam outros meios, mais eficazes, de dar cabo da própria vida. “Mas”, pensou ele, “vai que Deus resolve mandar novamente um anjo inoportuno para me salvar e me expor a mais uma palhaçada dessas?” Morrer tragicamente, estatelado no asfalto, teria sido digno de um magistrado, ao contrário da comédia-pastelão que de fato ocorreu.

Afinal, não era um palhaço. Era um juiz. E decidiu não morrer mais.

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