A velha ideia da literatura como documento do espírito do autor, muito combatida pela crítica dita científica, pode ser trazida de volta sem nenhum prejuízo da leitura inteligente?
Creio firmemente que sim. Independentemente do valor literário que possam ter as obras em si mesmas, nalguns casos — nos grandes gênios, principalmente, mas não só — todas elas incitam o leitor a continuar a busca, depois de lida a última página do livro, partindo no encalço do autor e seus mistérios enquanto pessoa — pessoa que crê em Deus, que Nele deixou de crer, ou que procura substituí-lo por falsos deuses.
Cada obra literária é parte integrante da caminhada individual do escritor, marco de uma ascensão ou decadência, degraus pelos quais sobe ou desce na escalada moral e cognitiva.
Neste sentido, um romance falho pode ser um bom “documento humano”, se tomado como parte de um conjunto maior ou marco de um caminho que avança; conjunto e caminho que só ganham sentido quando tomados em sua relação com o criador. Apesar dos diferentes movimentos de rotação que Guerra e paz e Sonata a Kreutzer (produtos do homem Tolstói) operam sobre si mesmas, enquanto obras relativamente autônomas menos ou mais bem realizadas, não dá para separá-las entre si e sobretudo da figura central e problemática de Tolstói, em torno da qual as duas transladam, continuamente, como planetas em volta do sol — um sol com mais sombras que luz, carregado de tantos equívocos pessoais, estéticos e filosóficos.
Exemplos sem conta poderiam ser mencionados, de Shakespeare a Goethe, de Dante a Dostoievski, de Homero a Kafka. Não há frustração maior, para esse tipo de leitor que aprecia a relação autor/obra, do que a de não saber nada acerca do autor da Ilíada e da Odisséia, se é que possuem um autor individual. Essa intransponível ignorância muito terá contribuído, certamente, para a hipótese da autoria coletiva dessas obras, em que alguém chamado Homero não teria passado de um compilador genial de narrativas já previamente compostas. Seja como for, não foram um presente dos deuses atirado do Olimpo e caído nalgum lugar da Grécia antiga.
Por maior que seja a felicidade estética provocada por uma boa encenação de Antônio e Cleópatra, queremos ver as outras peças: não sossegamos enquanto a imagem espiritual de Shakespeare não estiver desenhada com um mínimo de nitidez em nossa mente.
É perfeitamente lícito e normal buscar saber mais sobre esses homens perseguidos pelo mistério da condição humana, nós que admiramos a suas obras.
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