A biografia de Quintana pode ser resumida num pequeno parágrafo, pois quase nada aconteceu a esse homem simples, além do milagre da poesia. Certa vez, perguntado sobre sua idade, saiu-se com esta: “Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.”

Nasceu em 30 de julho de 1906, em Alegrete, interior do Rio Grande do Sul (“nasci prematuramente”, disse o poeta, “o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto”) e morreu na última década do século XX, em cinco de maio de 1994, competindo deslealmente com um defunto bem mais famoso naquela semana, o piloto Ayrton Senna. E só podia mesmo ter morrido em Porto Alegre, cidade de adoção da qual pouco saiu, morando a vida toda, provisoriamente, em hotéis e pensões, como se fosse um exercício perene de desprendimento da vida.

Suas entrevistas eram sempre muito boas. Eu tinha uma delas em fita VHS, exibida pela TV Educativa do Rio. Um dia, um ladrão entrou em casa e a levou junto com outras fitas (se viu a entrevista, na certa virou fã do poeta…). Sempre que podia, eu a mostrava aos alunos de Letras, que nela aprendiam mais sobre poesia do que nos maçantes e inúteis manuais de teoria da literatura. “Não me perguntem qual é o assunto de um poema; um poema fala sempre de outra coisa.” Eis a resposta definitiva às quixotescas aventuras da crítica dita científica.

Quintana, em vez de dar entrevistas, preferia ser lido: “Sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”.

Como Brás Cubas, não se casou nem teve filhos. Viveu perto de noventa anos — e sua rotina foi sempre a mesma: lia, escrevia, traduzia. Suas traduções em prosa ainda são respeitadas, nelas associando para sempre seu nome ao de um Proust, Conrad, Voltaire, Grahann Greene, Virginia Woolf, para só mencionar alguns.

Disse um dia, falando de si e da realização poética: “Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de autossuperação. Um poeta satisfeito não satisfaz a ninguém.”

Certa vez, recusou o convite de um prefeito de Alegrete, que queria um verso seu para gravar em bronze e fixar num monumento de praça. “Um engano em bronze é um engano eterno”, escreveu Quintana ao prefeito. Todos os seus leitores conhecem dezenas de versos do poeta que não desmereceriam o bronze mais duradouro do tempo. O prefeito, que não conseguiu o que desejava, gostou da frase — “Um engano em bronze é um engano eterno” — e mandou botá-la no monumento de Alegrete, avisando em seguida, entre parêntesis: “Frase com que o poeta Mário Quintana se eximiu de escolher um verso seu para gravar em bronze”.

Curiosamente, esse homem preocupado com a eternidade dos versos — e que um dia, ainda jovem, pôde escrever aquele belo soneto da “igrejinha de uma torre só” — foi se tornando, à medida que envelhecia, um homem cada vez mais distante de Deus, ao contrário da maioria de seus poemas, profundamente enraizados na verdadeira natureza das coisas. Estranhíssima dissociação…

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