Por que somos cristãos? Não custa repetir: em primeiro lugar, somos cristãos pela graça de Deus, pela qual podemos compreender que o cristianismo, antes de ser uma doutrina, é um conjunto de fatos (que, para nosso bem, geraram uma doutrina). Essa doutrina, como a conhecemos hoje, não surgiu da mente de alguns iluminados, mas deriva de fatos que a precedem e foram presenciados por muitas pessoas, que reputamos sadias da cabeça e honestas de coração.

Que fatos são esses? O acontecimento central do cristianismo é a ressurreição de um homem que tinha sido condenado e morto, aos trinta e três anos, por desobediência religiosa. Essa ressurreição, testemunhada por muita gente, foi depois registrada por escrito, e o conjunto desses textos é chamado de Novo Testamento, agregado a outro conjunto, bem mais antigo, chamado Velho Testamento, que reunia os textos sagrados da velha religião judaica.

O primeiro registro escrito do Novo Testamento está numa carta de um jovem intelectual judeu, chamado Paulo de Tarso, que lia e escrevia em hebraico, grego e latim. Esse intelectual era sobretudo um teólogo (ou fariseu, na terminologia hebraica). Paulo não conheceu pessoalmente o homem ressuscitado — ou melhor, o conheceria de uma forma estranha, alguns anos após a ressurreição, através de uma aparição sobrenatural no caminho de Damasco, cidade para a qual se dirigia o intelectual para continuar a fazer o que era a sua principal atividade de então: perseguir a seita cristã nascente.

De perseguidor, o teólogo-inquisidor judeu se transformou imediatamente no principal difusor da Boa Notícia, como eram então chamados os fatos e ensinamentos deixados pelo homem ressuscitado a seus discípulos. Depois da aparição (que seria só a primeira de uma séria de muitas), Paulo conheceu e se transformou em amigo dos discípulos diretos do ressuscitado, chamados de apóstolos, tendo escrito várias cartas nas quais disseminava os ensinamentos que deles ouvia, de mistura com o que lhe fora revelado diretamente, pelo ressuscitado, naquela série de várias aparições sobrenaturais.

Três textos importantes do Novo Testamento — Evangelho segundo Marcos, Evangelho segundo são Lucas e Atos dos apóstolos — foram escritos por discípulos de Paulo: João Marcos e um presumível médico chamado Lucas. Este também não conheceu pessoalmente o ressuscitado, mas privara intimamente com os discípulos de primeira hora. Na verdade, os dois textos de Lucas eram um único escrito, desdobrado em dois pela tradição que montou a Bíblia cristã.

Os outros dois Evangelhos (segundo Mateus e João) teriam sido escritos por dois apóstolos, ou por seguidores seus: o ex-cobrador de impostos Mateus e o chamado João Evangelista, que também escreveria o famoso Apocalipse e mais duas cartas, recolhidas no Novo Testamento, junto com duas cartas do apóstolo Pedro, uma do apóstolo Tiago e outra do apóstolo Judas.

Foi esse conjunto de textos — cuja maioria, direta ou indiretamente, tem a ver com Paulo de Tarso — que trouxe, até nós, aqueles estranhos fatos ocorridos, há quase dois mil anos, num pequeno país do Oriente Próximo, dominado então pelo Império Romano.

Paulo de Tarso, no qual muitos só veem o primeiro grande sistematizador da teologia cristã, além do seu lado “teórico” foi antes de tudo um forte, ou seja, uma espécie de “sertanês” a seu modo (sertanejo hoje significa outra coisa, não é?), cortando a pé aqueles perigosos sertões dos gentios para levar a Boa Nova aos pagãos.

É como o mostra o filme de Roberto Rossellini, Atos dos apóstolos, apresentando-nos um São Paulo não muito diferente dos personagens “sertaneses” da nossa boa literatura regional. Um precursor do Quixote que, ao contrário deste, não via gigantes onde havia moinhos de vento: quando caiu na areia quente e seca de Damasco, viu e ouviu o próprio Autor da Vida, que lhe mandou mudar de vida e deixar de perseguir cristãos.