O cristianismo foi a única doutrina religiosa que dividiu a História em antes e depois, pois era absolutamente novo aquele projeto pessoal e universal que consistia em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo — amar inclusive os piores inimigos da sociedade —, fundado na promessa de uma vida eterna com a ressurreição corpórea dos mortos.

Não foi tarefa fácil. Nos primeiros cinco séculos depois de Cristo, os cristãos viviam numa civilização de empréstimo, que não haviam construído. Eram estranhos no meio de estranhos, mesmo quando convertidos do próprio paganismo. Com a ruína do mundo antigo e do homem velho, iniciou o cristianismo o lento e trabalhoso edifício de uma nova civilização — a medieval —, que não foi criada ex nihilo, como Deus fez com o universo, mas usando materiais anteriores bem diferentes que, ao fim e ao cabo, resultaram bem cosidos: a fé de Jerusalém, as ideias de Atenas e as leis de Roma.

Esses três ingredientes se procuraram e encontraram muitas vezes, antes da Idade Média, sobretudo nas obras dos Padres da Igreja, em especial Santo Agostinho, que antes de sua conversão viveu dramaticamente aquela tríade. Foi o Bispo de Hipona que, na obra Cidade de Deus, lançaria as bases da filosofia cristã da história e influenciaria todo o pensamento medieval posterior. Santo Agostinho concebia a história humana a partir de dois amores opostos, que remontavam ao mundo angélico. Esses dois amores fundaram duas cidades distintas: o amor a Deus e desprezo de si mesmo criou a Cidade de Deus; e o amor de si, com desprezo de Deus, lançou as bases da “cidade dos homens”.

A Cidade de Deus é peregrina: desceu do céu, caminhará pela Terra e depois voltará ao ponto de partida — o Paraíso —, enquanto a “cidade dos homens” provém de baixo, lutará com a outra Cidade enquanto houver História, e um dia retornará aos abismos: o inferno. Aqui estão os dois horizontes — paraíso e inferno — que norteiam toda a cultura medieval, culminando em seus maiores produtos artísticos e literários, como a Divina comédia, a Suma teológica, as catedrais góticas, o canto gregoriano.

A Cidade de Deus, que se confunde com a própria Igreja, regula-se pelos mandamentos mosaicos e as virtudes cristãs, enquanto a “cidade dos homens” cria os próprios valores, geralmente invertendo os princípios normativos fundados na revelação divina. Essa filosofia da história foi a bússola da Idade Média, obedecendo-a ao ponto de arriscar a própria vida em defesa do Reino de Deus, como na Cavalaria e nas Cruzadas. Não se pode perder de vista a concepção cristã do mundo, predominante na Idade Média, quando se deseja bem compreender aqueles monumentos artísticos e literários, cuja estrutura conceitual está toda assentada na existência daquelas duas “cidades” espirituais — inferno e paraíso —, com as marcas registradas de cada uma delas: salvação ou perdição eterna.