jean-raspail

[O campo dos santos, polêmico romance de Jean Raspail publicado em 1973, pode ser caracterizado como profético, antecipando os conflitos que a Europa viveria décadas mais tarde, provocados pelas migrações. Nele, imagina o autor a França invadida por cem velhos navios, trazendo a bordo quase um milhão de indianos miseráveis, que aportam no sul da França. O país não sabe o que fazer com tantos migrantes, exceto os militantes esquerdistas, que acreditam chegada a hora de mais uma “revolução francesa”. O texto a seguir é o tragicômico 2º capítulo do romance, do qual emana um claro sentido alegórico a respeito da guerra cultural de nossos dias, entre, de um lado, o que restou da velha ordem ocidental e, de outro, do espírito revolucionário, acrescido de novas frentes de luta a partir de 1968].

Vindo da escadinha que conduzia à viela, o rapaz chegara ao terraço sem fazer barulho. De jeans e tênis desbotados, cabelo comprido, louro e sujo, aparência desleixada, olhar que deixava transparecer sua deformação de espírito, ele representava perfeitamente esses parasitas marginais que a Europa produziu às centenas de milhares e que já formam em seu seio, como um câncer, uma espécie de Terceiro Mundo voluntário.

— Venho lá de baixo — disse o rapaz. — Fabuloso! Enfim! Eu já esperava por isso!

— Está sozinho?

— Por enquanto. Sem contar alguns companheiros que já se encontravam na costa. Mas há outros descendo. A pé. Todos os porcos estão se mandando para o norte! Não se vê um carro na outra direção! Vão ser assassinados, mas não perderiam isso por nada.

— Lá embaixo, você se aproximou?

— Estive bem perto, sim, mas não por muito tempo. Levei umas coronhadas. Um oficial me chamou de verme. Mas vi soldados chorando. Isso é bom! Amanhã ninguém reconhecerá este país. Ele vai nascer.

— Viu os que chegavam, os que vinham nos barcos?

— Vi.

— E você acha que se parece com eles? Tem a pele branca. 9Fala francês, com o sotaque daqui. Tem parentes na região?

— E daí? Minha família é aquela que está desembarcando. Eis-me com um milhão de irmãos, irmãs, pais, mães e noivas. Farei um filho na primeira que se oferecer, um filho moreno, e depois disso já não serei parecido com ninguém.

— Você nem sequer existirá. Ficará perdido no meio dessa multidão. Ela nem vai dar pela sua presença.

— É isso que eu quero. Meus pais partiram esta manhã com minhas irmãs, que de repente ficaram com medo de ser estupradas. Tinham o rosto desfigurado pelo pavor. Eles vão agarrá-las. Todo o mundo será agarrado. De nada adiantará fugir, toda essa gente está liquidada. Se tivesse visto a cena!  Meu pai amontoando os calçados de sua loja na bela caminhonete, minha mãe fazendo a escolha aos prantos, abandonando os mais baratos, levando os mais caros, minhas irmãs já instaladas no banco da frente, grudadas uma na outra e me olhando horrorizadas, como se eu fosse o primeiro que ia estuprá-las; e eu, por fim, a rir como um louco, sobretudo quando meu pai desceu a porta de ferro e guardou a chave no bolso. Eu lhe disse: “Como se isso fosse servir de alguma coisa! Essa tua porta eu consigo abrir sem chave e vai ser amanhã. E teus sapatos acho que vão mijar neles, ou então comê-los, pois costumam andar descalços!” Aí ele me olhou e cuspiu em mim. Em revide, acertei-lhe o olho com um escarro caprichado. Foi assim que nos despedimos.

— E você? O que veio fazer aqui nesta aldeia? Em minha casa?

— Saquear. Além do exército, de você e de alguns companheiros, acho que não há mais ninguém num raio de cem quilômetros. Então eu saqueio. Mas não estou com fome. Já comi demais. Aliás, não preciso de muita coisa e tenho tudo à disposição. Amanhã, sou eu que vou lhes oferecer tudo isso. Sou uma espécie de rei e vou oferecer meu reino. Parece que hoje é Páscoa.

— Não compreendo.

— Há um milhão de Cristos a bordo daqueles barcos, e eles vão ressuscitar amanhã de manhã. Então, o seu Cristo, sozinho… também já era.

— Crê em Deus?

— Nem um pouco.

— E esse milhão de Cristos é ideia sua?

— Não. Mas, no estilo clerical, ela até que me parece bonita. Aliás, me foi sugerida por um padre. Estive com ele faz uma hora. Eu subia para cá, ele descia como um alucinado. Não parecia muito fora de si, mas estava estranho. De vez em quando parava, levantava os braços para o céu, como os outros lá embaixo, e depois gritava: “Obrigado, meu Deus!”, e voltava a correr em direção à praia. Parece que há outros descendo.

— Outros o quê?

— Outros padres que nem ele. Primeiro, você está me aborrecendo. Não vim para falar. E depois você não passa de um fantasma, o que é que ainda está fazendo aqui?

— Estou ouvindo o que me diz.

— E essas minhas besteiras lhe interessam?

— Muitíssimo.

— Você não passa de um coitado. Continua a pensar. Já não adianta pensar, isso também já era. Dê o fora!

— Oh, nada disso!

— Veja! Você e sua casa se parecem! É como se estivessem aqui há mil anos!

— Desde 1673, exatamente — disse o velho senhor, sorrindo primeira vez.

— Três séculos de certeza hereditária. Repugnante. Olho para você e o acho perfeito. É por isso que o odeio. E é para aqui, para sua casa, que trarei amanhã os mais miseráveis. Não tenho a menor ideia do que você é, do que representa. Seu universo não tem nenhum significado para eles. Eles não se esforçarão para entender. Estarão cansados, com frio, farão uma fogueira com sua bela porta de carvalho. Cobrirão o terraço de cocô e limparão as mãos nos livros de sua biblioteca. Cuspirão seu vinho. Comerão com os dedos nas belas peças de estanho que estou vendo na parede. Sentados nos calcanhares, verão arder suas cadeiras. Farão enfeites com os bordados de seus lençóis. Cada objeto perderá a função que você lhe atribuía, o belo deixará de ser belo, o útil se tornará irrisório, e o inútil, absurdo. Nada mais terá valor profundo, à exceção talvez do pedaço de barbante esquecido num canto e que eles lutarão entre si para pegar — quem sabe? — quebrando tudo em volta. Vai ser formidável! Suma daqui!

— Mais uma palavra: eles vão destruir sem saber, sem compreender. Mas e você?

— Eu, porque aprendi a odiar tudo isto. Porque a consciência global do mundo exige que se odeie tudo isto. Suma daqui! Você me enche o saco!

— Como queira.

O velho senhor entrou na casa, saindo logo depois com uma espingarda de caça na mão.

— O que vai fazer? — perguntou o rapaz.

— Vou matá-lo, é claro! O mundo que é o meu talvez já não exista depois de amanhã de manhã e tenho a intenção de aproveitar intensamente os seus últimos momentos. Vou viver uma segunda vida, esta noite, sem arredar o pé daqui, e creio que ela será ainda mais bela do que a primeira. Como meus semelhantes foram embora, pretendo vivê-la sozinho.

— E eu?

— Você, você não é meu semelhante. Você é meu adversário. Não quero estragar esta noite essencial em companhia de meu adversário. Portanto, vou matá-lo.

— Não será capaz. Tenho certeza de que nunca matou ninguém.

— É verdade. Sempre levei a vida tranquila de um professor de letras que gostava da profissão. Nenhuma guerra precisou de minha ajuda e as matanças aparentemente inúteis me causam mal estar físico. Provavelmente teria dado um péssimo soldado. Todavia, como Actius, creio que teria matado hunos com satisfação. E furar a carne dos árabes ao lado de Carlos Martelo me teria enchido de entusiasmo, tal como ao lado de Godofredo de Buillon e de Balduíno o leproso. À sombra das muralhas das muralhas de Bizâncio, morto ao lado de Constantino Dragasès, Deus do céu! quantos turcos eu não teria chacinado antes de morrer! Felizmente, os homens que ignoram a dúvida não morrem com tanta facilidade! Apenas ressuscitado, eis-me a retalhar eslavos em companhia dos teutões. Trago a cruz em meu manto branco e parto de Rodes a empunhar a espada ensanguentada, com a pequena tropa exemplar de Villiers de L’Isle-Adam. Marujo do Dom João da Áustria, vingo-me em Lepanto. Bela carnificina! Depois deixam de me convocar. Apenas umas ninharias, que começam a ser vistas com maus olhos, da história contemporânea, triste pilhéria, já nem me lembro muito bem. Tudo isso se torna muito feio: já não há fanfarras, nem estandartes, nem Te Deum. Perdoe o pedantismo de um velho universitário rabugento. É óbvio que não matei ninguém, mas todas essas batalhas, de que me sinto solidário até o imo de minha alma, eu as revejo todas ao mesmo tempo, sou delas o único ator, com um único tiro. Aí vai!

O rapaz tombou com elegância, deslizando ao longo da balaustrada em que se encostara, e ficou sentado sobre os calcanhares, os braços pendendo ao lado do corpo, numa posição que lhe parecia familiar. A mancha vermelha no lado esquerdo do peito aumentou um pouco, e logo parou de sangrar. Morreu decentemente. Nos olhos, que o professor fechou com gesto suave do polegar e do dedo médio, não se percebia nenhum espanto. Nada de estandartes, nem de fanfarras, uma vitória à moda ocidental, tão definitiva quanto inútil e irrisória. Foi em paz consigo mesmo — uma paz de tal modo suave que não se recordava de haver experimentado outra tão perfeita —, que o velho senhor Calguès virou as costas para esse morto e entrou em casa.

(Jean Raspail. O campo dos santos. Trad. de Roberto C. de Lacerda. Rio, Ediouro, 1998)

 

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