Wittenberg, Stadtansicht / Holzschn. - Wittenberg / Coloured woodcut / c. 1558 -

Quando São Paulo afirmou que já não havia diferença entre judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, pois eram todos “um” em Jesus Cristo (Gal, 3, 28), estava iniciando a mais profunda reforma da família de que se tem notícia na História. O cristianismo dava à pessoa humana e à família um novo rosto e um novo sentido, baseados no relacionamento fraterno, de mútuo respeito.

Essa restauração que se deu muito devagar, sem passe de mágica, produto de um esforço lento e permanente que ainda continua e só terminará no fim do mundo, pois o cristianismo não trabalha com metodologia revolucionária. A história da literatura ocidental, de Dante Alighieri a Shakespeare, de Cervantes a Dostoievski, revela o quanto foi e continua difícil a convivência familiar nos dois mil anos de civilização cristã, apesar de todo o ensinamento moral da Igreja.

A Igreja, porém, não se contentava em reconhecer que a humanidade dependia visceralmente da família; que a união física do homem e da mulher, resultando quase sempre em filhos, era a razão de ser da espécie humana. A essa realidade biológica e natural, acrescentava elementos sobrenaturais, que faziam da família cristã não só um grupo constituído de pessoas com parentesco próximo, compartilhando o mesmo sobrenome, vivendo sob o mesmo teto, com ancestrais em comum; não só um conjunto de pessoas ligadas entre si pelo efêmero sangue humano, mas sobretudo pelo sangue que Jesus verteu na Cruz, regida pelos dez mandamentos e as virtudes evangélicas.

Contudo, havia mais. Família, na verdade, era o destino eterno do homem e do próprio Deus. A divindade era inequivocamente uma família — Pai, Filho, Espírito Santo — e a ela quis incorporar a humanidade criada. E quando Deus se fez homem, preparou para tal fim uma pequena família em Nazaré, que lançou o padrão familiar desejável para esses nossos “últimos tempos” (que já passam de dois mil anos).

Do ponto de vista cristão, os homens já podiam começar a integrar essa família celeste ainda aqui, neste mundo, vivendo sob a mesma paternidade divina, através da Igreja, família sobrenatural — a Civitas Dei de Santo Agostinho — que já significava a primeira superação da família biológica, com seus membros já definitivos povoando o Purgatório e o Céu; e provisórios, os cristãos ainda vivos.

Nas famílias deste mundo, a Igreja entendia que todos os seus membros eram iguais perante Deus. Sua base era o sacramento do matrimônio, no qual homem e mulher se uniam tanto para o prazer do encontro íntimo, como para o sacrifício da geração de filhos, sempre fundado na fidelidade recíproca. Era, por vontade divina, humanamente indissolúvel, e tinha, como finalidade mais importante, a santificação dos seus membros aqui e agora, visando a Vida num mundo que não era deste mundo: depois e além.

Dessa renovação cristã da família — o surgimento do “homem novo”, de que falava São Paulo —, surgiria uma civilização diferente de todas as anteriores: a ocidental, fundada na família cristã, encarregada de manter vivas as verdades religiosas e morais permanentes, transmitidas de geração a geração, como prenúncio da inumerável família ressuscitada da qual faria parte um dia a humanidade — em nova terra, sob novos céus. Uma família à qual pertenceriam todos os homens salvos, a verdadeira família de Abraão, mais numerosa que as areias do mar e as estrelas do céu.

Insistir no Céu como lar eterno de uma família numerosíssima — em que todos seriam fraternalmente íntimos de todos, pois teriam toda a eternidade para isto — era o melhor caminho que a Igreja encontrou para pastorear a família terrena nos pastos turvos do mundo, durante as chuvas e trovoadas da História.