É comum encontrar, nos melhores manuais de introdução à literatura, a afirmação de que bons poemas e bons romances enriquecem nosso conhecimento da condição humana. Só os críticos formalistas parecem não concordar que tais livros estejam cheios de informações preciosas sobre os vícios humanos e o mecanismo pelo qual operam na consciência e nas atitudes das pessoas.
Onde está a fonte dessa riqueza psicológica e, algumas vezes, espiritual? Li certa vez, em artigo de Olavo de Carvalho sobre escritores católicos, uma observação interessante sobre a influência, no romance psicológico, da técnica do velho exame de consciência católico (que todo o mundo praticou, desde o início do cristianismo).
Aliás, toda a literatura ocidental, mesmo antes da eclosão do gênero ficcional no século XVIII e XIX, é inconcebível sem os critérios oferecidos pela teologia moral para o indivíduo verificar se andava em paz com Deus ou não. Da Divina comédia em diante, passando pelos poemas de Petrarca e os grandes líricos renascentistas e barrocos, os dramas dos ingleses, franceses e espanhóis — a mente ocidental sempre esteva bem treinada na localização culposa dos vícios e dos pecados
Mais tarde, quando virou moda perder a fé, os escritores não perdiam o hábito e a necessidade de fazer periodicamente acertos de contas com a própria consciência (para usar uma expressão do crítico italiano Renato Serra, que viveu no início do século XX e tem uma obra intitulada Exame de consciência de um literato). E o faziam em cartas com amigos, diários íntimos, livros de memórias, em poemas, e até em romances, disfarçando-se muitas vezes de personagens que, no fundo, eram eles mesmos.
O exame de consciência católico criou uma literatura e uma civilização.
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São Bernardo de Claraval, em seu “Exame cotidiano de si mesmo”, escrito no século XII, tem belas e permanentes palavras sobre essa prática do autojulgamento moral, responsável pela civilização cristã que agora agoniza:
“Guardião vigilante de vossa integridade, examinai vossa conduta numa revisão que fareis a cada dia. Considerai atentamente quanto avançais ou quanto recuais; quais são os vossos costumes, as vossas afeições. Vide se vos assemelhais a Deus, ou se em nada pareceis com ele; quanto vos encontrais perto, ou longe dele, não pela distância dos lugares, mas pelos sentimentos da alma. Procurai conhecer-vos: sereis muito melhor, e mais digno de louvor, se vos conhecerdes a vós mesmos, em vez de, negligenciando a vós mesmos, tudo souberdes sobre o curso dos astros, a natureza dos animais, a propriedade das plantas, o temperamento dos homens, e até se possuirdes a ciência de todas as coisas celestes e terrestres.
Voltai-vos para vós mesmos como numa espécie de restituição (que, se não for sempre nem várias vezes, ocorra ao menos de tempos em tempos). Regrai vossos afetos, governai vossos atos, corrigi vossos passos. Que não vos reste nenhuma indisciplina. Colocai vossas prevaricações sob vossos olhos, comparecei diante de vós como na frente de um estranho, e assim, sobre vós, derramai lágrimas. Chorai as iniquidades e pecados que ofenderam a Deus; mostrai a Ele vossas misérias, a Ele revelai a malícia de vossos adversários.
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