tolstói

O escritor russo Leão Tolstói (1828-1910), se tivesse falecido depois de terminar seu romance Ana Karenina, por volta de 1878, aos cinquenta anos de idade, teria entrado para a história da literatura como um dos maiores romancistas de todos os tempos. Não era pouca coisa. O título seria mais do que justo, pois Tolstói era realmente um habilíssimo narrador e um grande conhecedor de almas.

Contudo, viveu muito mais. E aquele ano de 1878 marcou a sua volta ao cristianismo — um cristianismo todo pessoal, “self-service”, fundado na livre interpretação das Escrituras. Viveu até o século seguinte, não deixando este mundo antes de 1910.

Entre 1878 e 1910, quase não escreveu mais obras de ficção, dedicando-se quase exclusivamente a escrever ensaios em defesa do seu pensamento político-religioso, que era — nem mais, nem menos — o de transformar o Reino espiritual de Cristo em reino deste mundo (contrariando o Mestre que dizia seguir e que havia afirmado que Seu reino não era deste mundo). Tolstói considerava-se uma espécie de profeta, líder de uma nova religião humanitária, um novo humanismo que incluía elementos hoje bastante atuais.

As bases dessa filosofia eram o pacifismo (não era lícito resistir ao mal por meios violentos), o panteísmo (identificava Deus com a vida: viver e conhecer a Deus eram a mesma coisa), o vegetarianismo (era necessário abrir mão de alimento animal), anarquismo (era nociva toda forma de governo, fosse na política ou na religião), socialismo (a forma mais alta de justiça social era a divisão igualitária dos bens), coletivismo (repúdio da propriedade privada), ecologismo (o lugar por excelência do ser humano era o campo, perto dos animais e das plantas, em harmonia com o meio ambiente).

À parte a castidade sexual, que recomendou, embora sem conseguir praticá-la pessoalmente, esse roteiro revolucionário encaixa-se como uma luva nas mãos do homem contemporâneo. Sua mistura de comunismo, ambientalismo e um vago cristianismo filantrópico fazem de Tolstói — que seria, em 1900, excomungado pela Igreja Ortodoxa — uma espécie de precursor da “teologia da libertação”, sobretudo em sua versão mais recente (em que o homem é não só visto um explorador do homem, mas também um verdadeiro cancro do universo, segundo o “panteólogo” Boff). Se foram realmente os engenheiros socias da KGB que criaram a “teologia da libertação”, já a tinham como modelo na obra final do “teólogo” Tolstói.

Tolstói pregava uma revolução interior, cujo mandamento número um, base de todo o seu edifício espiritual, era o autodesprendimento. Era algo que ele ensinava a todos que o cercavam, sem contudo conseguir realizar pessoalmente, pois a soberba foi a doença incurável do autor de Guerra e paz.

Paul Johnson, no retrato que dele faz em sua obra Os intelectuais, pinça aqui e ali, em suas confissões, o que pensava Tolstói sobre Tolstói. Considerava a si mesmo um gênio das ideias e da ação, um ser moralmente superior, que nada tinha feito na vida exceto procurar o bem e por ele tudo sacrificar, a ponto de sinceramente espantar-se com o não reconhecimento de suas virtudes. Acreditava-se autorizado a exercer jurisdição moral sobre os outros, como exemplifica sua própria neta, em entrevista postada aqui, neste blog.

 Continua Paul Johnson: Quando ele se tornou um reformador social, a identificação com Deus tornou-se mais forte, uma vez que o programa proposto coincidia com a divindade, como ele o definiu: “O desejo de bem-estar universal … É o que chamamos de Deus. Ele realmente se sentiu possuído pela divindade, tendo observado em seu diário:“ Ajuda, pai, venha habitar em mim, você já habita em mim. Você já é “eu”. Mas o problema com essa coexistência de Tolstoi e Deus habitando a mesma alma era que Tolstoi desconfiava muito de seu Criador, como observou Gorki. Era como “dois ursos na mesma caverna”. Às vezes, Tolstói parecia pensar em si mesmo como o irmão de Deus; na verdade, o seu irmão mais velho. (Os intelectuais, p. 121)

Se, apesar da inspiração demoníaca, o anti-Cristo é algo que a humanidade vem elaborando e aperfeiçoando através do tempo, amadurecendo seu perfil com as experiências fornecidas pela própria história, Tolstói terá contribuído com preciosa matéria-prima pessoal na construção desse que, um dia, no fim dos séculos, levará na conversa a maior parte dos homens. Parece que Soloviev teria se inspirado nele para construir o anti-Cristo de seu célebre conto, o qual, com Tolstói, à parte o fascínio pessoal e a inteligência muito aguda, também condividia o pacifismo, o panteísmo, o vegetarianismo, o ecologismo.

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