jackson-de-figueiredo

[O médico e ensaísta católico Hamilton Nogueira, autor de livros sobre Dostoiévski e Conrad, escreveu em 1929, ainda jovem, essa homenagem a seu mestre Jackson de Figueiredo, falecido prematuramente em 1927, antes que pudesse amadurecer seu pensamento filosófico e político. Era um tradicionalista: não simpatizava com a democracia liberal, nem com os totalitarismos fascista e comunista. O texto revela algumas coisas sobre o catolicismo conservador daquela época e um pouco da personalidade intelectual de Jackson, que fundou o Centro Dom Vital, criou a revista A Ordem e foi o principal líder católico brasileiro da década de 20.]

Jackson de Figueiredo foi para nós o símbolo do que erradamente se chamou em França geração sacrificada. Fora melhor dizer geração glorificada. Glorificada por nós, homens de hoje, que lhe devemos o renascimento de nossa fé, glorificada pela intelectualidade moderna que lhe deve a destruição dos Ídolos, das falsas ideias, da meia ciência, do agnosticismo, dos erros que conduziram à brutalidade e ao desespero as gerações que nos precederam.

Tendo sido para o Brasil o que foi para a França um Peguy ou um Psichari, Jackson não foi em nada inferior ao neto de Renan nem ao panegirista de Joanna d’Arc. E a sua ação foi talvez maior porque se exerceu num meio não preparado ainda, num meio que não podia compreende-lo, que o não compreendeu, de fato, em toda a pujança do seu gênio.

Mais do que ninguém, no entanto, ele compreendeu o Brasil. À sua visão maistreana não escapou um só dos problemas essenciais da nossa nacionalidade, da nossa vida política, social e religiosa.

Jackson possuía ao mesmo tempo o senso político e o senso da catolicidade. Ele previa, quase adivinhava a sucessão dos acontecimentos, e nós, que já estávamos habituados a pensar o que ele pensava, que nos amparávamos na força da sua fé, do seu patriotismo, da sua coragem, do seu entusiasmo, sentimos, angustiados, o vazio que ele nos deixou.

Já estamos vendo, já estamos sentindo que ele sempre tinha razão. Já estamos percebendo os rumores iniciais de uma agitação social e política que se prepara, agitação que ele temia a despeito do otimismo reinante.

Jackson não tinha a menor ilusão deste mundo. Gênio intuitivo, ele apreendia imediatamente a profundeza de todas as questões, e por isso chocava a mediocridade, chocava os espíritos superficiais, que o não compreendiam, ou o tinham por um pensador retardatário.

Nós mesmos que o acompanhávamos de perto, nas suas lutas e nas suas angústias, perguntávamos de nós para nós se não o impelia às vezes a sedução do paradoxo ou uma certa ânsia de originalidade.

Mas nós é que errávamos. Como as de Chesterton as ideias de Jackson de Figueiredo eram paradoxais, mas paradoxais relativamente a uma sociedade que cada vez mais se corrompe ao sabor de todas as ideologias do pensamento contemporâneo.

“A realidade transborda do conceito”, repetia frequentemente citando o pensamento tomista, pensamento que, há dezessete anos, sem conhecer ainda a doutrina de S. Tomás, ele expressava assim: “A vida é mais forte que a mais forte das filosofias…”

Sim, foi essa intuição profunda da realidade um dos característicos do pensamento político de Jackson de Figueiredo.

Pôde dizer-se que a sua política é a política do bom senso, a política do senso comum no sentido tomista do termo.

“Reação do Bom Senso”, denominara ele próprio o livro em que enfeixou aquela admirável série de artigos reacionários contra a demagogia revolucionaria, que mais uma vez ameaçava a nossa estabilidade social.

Tendo claramente a visão da totalidade o seu espírito ia diretamente à essência das coisas. É por isso que é erro considerá-lo simplesmente como homem de ação.

Sim, Jackson era homem de ação, um realista, mas um realista na acepção filosófica do termo. A sua capacidade ativa era o transbordamento, a irradiação de uma inteligência que se movia sempre na esfera do ser.

E por isso ele foi o mais completo pensador político que o Brasil possuiu até hoje.

Na verdade, o que ele deixou escrito não diz de um modo explícito todo o seu pensamento construtor, mas, mesmo assim, desses fragmentos luminosos, nos quase, como dizia um amigo nosso, “Jackson tantas vezes parecia raciocinar por absurdo”, desses fragmentos luminosos pode-se deduzir as linhas gerais de uma organização política nacional.

O espírito da política de Jackson de Figueiredo é o espirito religioso, é o espirito essencialmente, substancialmente católico.

Toda a sua ação pode sintetizar-se nesta máxima de José de Maistre: “Não é mesmo a contrarrevolução o que se tem a fazer, mas o contrário da Revolução”.

É ele o defensor por excelência do partido da ordem.

A Revolução, satânica nos seus princípios, nos seus meios e nos seus fins, não pôde conciliar-se com os princípios diretores da Civilização Cristã, nem dar aos povos os bens naturais que lhes deve garantir o governo temporal.

“A verdadeira História nos diz — escreve Jackson — a verdadeira História, e não os panfletos de cego e estúpido sectarismo, adotados em todo o Ocidente, da Revolução francesa para cá — o que ela nos diz é que uma única moral política foi realmente vivificadora, organizadora, civilizadora; a moral política decorrente dos princípios religiosos e Moraes da Igreja Católica, que dignificou a humildade, a submissão, e, fundando assim a ordem prática, pode coroa-la com as magnas conquistas da liberdade cristã: a adesão constante de grandes e pequenos ao sentimento do dever diante da lei, a consciência de que é possível fazer pacificamente a reforma de todos os abusos, de Iodos os atentados à dignidade humana.

“Criado porém, pela Reforma protestante, o fantasma de uma Liberdade, de pura e péssima metafísica, isto é, sem realidade objetiva, que não as das suas criminosas consequências, o que se viu, de um a outro extremo do mundo Ocidental, foi a morte do sistema monárquico cristão, e a sua substituição pelo mais nefando cesarismo, que tal foi e tal é o das chamadas monarquias liberais, ou pela tirania da incompetência, que tal tem sido a dos chamados governos democráticos, de republicanismo mais ou menos vermelho— formando tudo isto uma só ordem revolucionaria, anticristã, deletéria, evidentemente impossível de sustentar-se por muito tempo mais, seja que dela venhamos a ser lançados nas trevas de um novo eclipse da civilização, seja que retomemos o fio da fé salvadora, única capaz de refazer-nos moralmente. Chegamos a uma dessas situações em que a História vale de verdade como mestra”

Jackson foi o primeiro pensador político brasileiro que, sem se afastar da experiência histórica, expôs em toda a sua inteireza, na sua mais pura ortodoxia, os princípios tradicionais da política religiosa católica, princípios universais, fora e acima de todos os partidos, fundamentados na justiça e no direito emanados dos Evangelhos.

É sobre esse fundamento católico do pensamento político de Jackson de Figueiredo que nunca será demasiado insistir, porque foi justamente o ponto mais atacado, mais incompreendido, da sua atividade doutrinária.

É inegável que uma natureza como a sua, profundamente vibrátil, sensível, que amava a vida, onde quer que ela se manifestasse vibrante e intensa, sentisse a atração da política. É inegável que num ambiente agitado como o que serviu de cenário à sua esplêndida doutrinação política, ele se sentisse atraído para a luta. Mas, diga-se a verdade, numa ação contínua de seis anos de combate, Jackson jamais perdeu o senso da catolicidade.

Ele atirou-se com ardor ao campo de luta quando a fermentação surda do espirito revolucionário ameaçava destruir violentamente os últimos resquícios de autoridade que ainda mantêm unida a nação brasileira.

Contra uma revolução em expectativa, talvez uma tremenda guerra civil. Jackson prega a lição da experiência, procurando estimular o bom senso dos seus compatriotas, profundamente dominado pela paixão revolucionária.

Mas, se ao comum dos homens ele pregava a lição da História, a seus irmãos católicos lembrava os ensinamentos evangélicos.

A Igreja, o Partido da Ordem por excelência, o “Templo de Definição dos Deveres”, condenara sempre todos os movimentos de revolta contra o poder legitimamente constituído. Era preciso, pois, lutar com coragem e perseverança contra aquela onda de anarquia que ameaçava desmembrar a nossa nacionalidade.

E então, com uma eloquência arrebatadora, com uma cultura invejável, com um senso profundo da realidade brasileira, Jackson defende o princípio de autoridade contra a demagogia revolucionária, contra as paixões insensatas do momento, e aponta as consequências lamentáveis e desoladoras das revoluções.

Em certos momentos de desanimo ele deixava transparecer aos seus amigos mais íntimos ideias arrojadas. Mas eram relâmpagos que desapareciam tão depressa como tinham surgido. Eram diálogos em voz alta com a sua própria consciência, nobre consciência cristã, sempre vencedora.

Católico da linhagem dos Bonald, dos De Maistre, dos Veuillot, nós podemos testemunhar, podemos jurar sobre os Evangelhos, que debaixo daquela natureza agreste de nordestino, ao lado do mais terno dos corações, se encontrava o filho submisso da Igreja.

Como ele próprio declarou na sua obra admirável sobre Pascal, ele, Jackson, “depositara o seu individualismo intelectual nas mãos amantíssimas da Igreja Católica”.

E na verdade, em dez anos de ardente apostolado, Jackson não desmentiu um só momento a sua palavra.

Crítico, pensador, filósofo, doutrinário político, ele o foi como verdadeiro cristão.

Foi, portanto, coerente com a doutrina que professava, quando se contrapôs corajosamente às paixões revolucionárias que agitaram tão fortemente o cenário da política nacional.

Cumpre notar que a Revolução não consiste somente no choque de forças armadas, nas pilhagens e nos bombardeios; tudo isso é a exteriorização, apenas, de uma profunda inquietude na vida social de um determinado povo.

É o que sempre repetia Jackson de Figueiredo.

“Até a revolução! Isto é que é assombroso, o conceito de revolução que implicitamente se contém na revelação desse temor… Como se revolução fosse somente o tiroteio nas ruas ou mesmo uma simples passeata militar, do seio dos quartéis ao pedestal do poder público constituído! Não, a revolução tem outros, muitos outros aspectos, só aparentemente menos violentos, e é em plena revolução que nós estamos. Quando, numa dada sociedade, todos sentem que o seu destino está entregue às decisões da força e não da autoridade, quando ao respeito da lei se substitui a expectativa do que decidirá a espada, a revolução já é um fato, a revolução não está por fazer-se; vai, pelo contrário, à medida que demora a explosão da sua natural brutalidade, fazendo-se mais forte, mais profunda, criando raízes mais resistentes, tornando-se, por conseguinte, mais difícil de ser dominada”.

Vem daí — o que já tivemos ocasião de falar num trabalho sobre a sua personalidade — o seu combate às causas da revolução branca, ao liberalismo e à democracia.

São essas causas, incontestavelmente, os principais fatores de todas as revoluções políticas que tem agitado o Brasil, desde a decadência do Segundo Reinado até os nossos dias.

Mas — perguntarão — não é a Igreja indiferente às formas de governo? Não aceita a democracia?

A Igreja, de facto, é indiferente a qualquer forma de governo. Mas é preciso notar que ela não o é, nem o pôde ser ao espírito que anima essa forma.

É o que diz Roussel, comentando a Encíclica Immortale Dei.

“Ninguém ignora hoje os graves inconvenientes do regime eleitoral, sobretudo de forma parlamentar e democrática, num grande pais de interesses tão diversos e tão complexos. Em todo o caso se a Igreja é indiferente às formas de Governo, ela não é indiferente aos próprios governos, aos princípios que os animam, às legislações que formulam, à política que seguem. Ela quer, e não o oculta, que o governo seja cristão, a legislação cristã, a politica cristã”.

Há, por conseguinte, do ponto de vista cristão, absoluta coerência na política antidemocrática e reacionária de Jackson de Figueiredo.

O que ele combate é a democracia ateia. A democracia que arrancou Jesus Cristo das escolas, e à sua doutrina incomparável substituiu com os princípios do liberalismo revolucionário:

“A democracia faliu, e não podem deixar de ser criminosas e anticristãs — todas as suas consequências no terreno da prática política contemporânea”.

Jackson de Figueiredo já foi acusado de ser um romântico da autoridade. Essa acusação teria razão de ser, se ele considerasse a autoridade não como um meio para obter a estabilidade social, mas como um fim, caindo desse modo no Estatismo, na adoração do Estado pelo Estado, da autoridade pela autoridade.

Jackson defendeu a autoridade, afrontando todas as calúnias e sacrifícios, porque, como doutrinário católico consciente da sua responsabilidade, como político de aguda visão — que jamais se afastava da experiência histórica, ele tinha o dever de esclarecer a opinião pública, ou, pelo menos, uma certa elite da intelectualidade brasileira.

E esse dever ele o cumpriu corajosamente, nobremente.

Tão formidável era o desequilíbrio social acarretado pelo desencadeamento das paixões, que todos tinham a impressão de um verdadeiro naufrágio das instituições sustentadoras da nacionalidade. Tão impetuosa era a avalanche aniquiladora das ideias revolucionarias, que, aqueles que defendiam os princípios de ordem e de bondade, apareciam aos olhos da mentalidade vulgar como simples indivíduos assalariados pela situação dominante, ou, por muito favor, ingênuos visionários, sonhadores de utopias sem o menor fundamento real.

Jackson soube reagir contra esse ambiente, e conseguiu mesmo orientar uma grande parte da intelectualidade brasileira.

Pouco lhe importavam as calúnias dos jornais exploradores das paixões populares. Ele conhecia, e sempre repetia aquele pensamento de Disraeli, de que “o que faz a força da Inglaterra é que lá os homens de bem não têm menos coragem que os canalhas” .

Com o seu exemplo admirável procurou elevar, enobrecer o Brasil, lutando pela reivindicação dos direitos da inteligência sobre os instintos, do superior sobre o inferior, das elites sobre as multidões.

De um modo afirmativo não há nos escritos de Jackson de Figueiredo, pelo menos no que foi publicado, menção alguma sobre a forma de governo que ele considerava mais perfeita em relação ao ponto de vista brasileiro.

É verdade que a sua política antidemocrática deixa transparecer, naturalmente, a sua tendência para os governos fortes e autoritários.

Ele era um monarquista convicto, se bem que, em público, nunca o tivesse afirmado claramente.

Mas a sua monarquia, a monarquia que ele julgava capaz de salvar o nosso pais, em nada se parecia com as monarquias modernas e muito menos com a monarquia liberal e voltairiana do nosso D. Pedro II.

A sua monarquia era a monarquia absoluta, inteiramente informada pelo espirito católico.

E era nesse ponto de vista que Jackson de Figueiredo se aproximava do integralismo lusitano de Antônio Sardinha.

Por ocasião da condenação da “Action Française”, os inimigos políticos de Jackson de Figueiredo tentaram fazer crer que as suas ideias politicas eram as mesmas ideias condenadas dc Charles Maurras.

Erraram o golpe, pois ao senso de católico de Jackson não escapou o ponto frágil da doutrina maurasseana, quatro anos antes da referida condenação.

E nesse sentido não nos furtamos ao prazer de transcrever o valioso e insuspeito testemunho de D. M. Gonçalves Cerejeira, Arcebispo de Mytilene, sobre a ação política dos membros do “Centro D. Vital” e do seu inesquecível chefe.

“Pela sua ação contrarrevolucionaria — diz o eminente Arcebispo — esses jovens procedem todos espiritualmente de José de Maistre, e oferecem grandes afinidades com os integralistas portugueses. Em relação a Maurras, cuja clara doutrinação contra a anarquia moderna admiram e perfilham, ainda antes de Roma ter denunciado o paganismo latente da construção maurraseana, já a sua inteireza de fé os tinha advertido que esta conduzia à submissão de tudo à ordem civil, pelo desconhecimento da ordem sobrenatural”.

Sim, para Jackson de Figueiredo como para Antônio Sardinha, a ordem sobrenatural era o fundamento de toda a sua doutrinação política. Para ambos “apenas a Igreja, que fez a Europa e que salvou do naufrágio do mundo antigo os melhores legados da cultura clássica, aponta a estrada segura da vitória e da reconstrução”.

Morreu o nosso grande pensador político no início da sua carreira. Morreu lutando contra a anarquia moderna, quando o Brasil mais precisava de homens da sua têmpera, da sua cultura e do seu caráter. Mas as suas obras ficam, ficam as suas ideias envolvidas pela eloquência de uma profunda convicção, de uma vida admirável, de uma vida pura, que soube honrar a sua pátria e a sua religião.

(Em A Ordem, 1929, p. 243)

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