Mauriac-O-Deserto-do-Amor

Mauriac não é apenas um nome que me acompanha desde os anos 30, mas uma presença que me segue a partir do dia em que caiu sob os meus olhos um de seus romances, não me recordo se o Désert de l’amour ou Le Baiser au Lepreux. Dessa data em diante não houve livro seu que não se incorporasse à minha biblioteca, povoando-a de personagens estranhos como Isabelle Fondaudège, Xavier Dartigelongue, Blanche Frontenac, Raymond Courrègcs, Claude Favereau, Thérèse Desqueyroux…

Estou certo de que ao ler alguns desses nomes, muitos leitores se recordarão do enredo dos romances em que eles figuram, que permanecem em sua lembrança, porque difícil é olvidar os dramas por eles vividos. Cada romance de Mauriac é uma estória dolorosa em que o mais profundo do íntimo das criaturas é trazido à tona para o espanto dos leitores habituados aos fracos livrinhos de ficção. Como os escafandros emergem das profundezas do mar gotejantes de bichos e plantas submarinos, as estórias de Mauriac surgem encharcadas de lama existente no íntimo mais profundo de seus personagens…

Ao contrário de muitos romancistas que se valeram ou se valem apenas da fantasia ou da imaginação para inventar suas estórias frágeis, Mauriac procurou servir-se das atitudes e dos sentimentos de parte da antiga burguesia provinciana francesa para criar sua poderosa ficção. A autenticidade que emana não só do comportamento de seus heróis como dos casarões em que viveram, geralmente constituídos de construções pesadas e sólidas, rodeadas de pinheirais e vinhedos, de riachos e pombais, provém da circunstância de o romancista jamais se haver olvidado de cenas acontecidas nas propriedades da velha província em que nasceu. Até mesmo os casarões em que viveram os provincianos de Bordeaux permaneceram para sempre na lembrança de Mauriac, de tal forma que ele confessou não ter concebido nenhum romance sem ter presente ao espírito, em seus menores recantos, a casa que seria o teatro de seus dramas.

Dos pinheirais e vinhedos de Malagar (nome que ressoa forte nos ouvidos dos que conhecem a biografia do romancista), o menino François observava curiosa e atentamente (nem sempre conscientemente) o comportamento das famílias que o rodeavam, cujas vidas, mescladas à sua fértil imaginação, iriam dar nascimento à maioria de seus futuros romances e novelas.

Essa criança que jamais se esqueceu da infância, quando homem feito resolveu reviver, fantasiando a existência de antigos burgueses que, encerrados dentro de seus castelos, foram corroídos pela ociosidade, pela avareza, pela ambição, às vezes até pelo esquecimento de Cristo. Por isso mesmo os seus personagens não apresentam esse ar de contentamento que vemos estampado no rosto dos heróis de um Maurois, de um Giraudoux, de um Maurice Baring; pelo contrário, suas fisionomias são melancólicas e amarguradas, refletindo a ganância, o medo de perder seu status social, o receio de morrer estuporado, de uma hora para outra…

Até nos mais simples personagens mauriaquianos existe uma mola oculta sob o véu dos bons sentimentos, o interesse. É o interesse que move alguns dos heróis e heroínas de Mauriac, como aquela matrona que, atacada de câncer, deseja morrer depressa, a fim de poupar à família os gastos de uma operação, ou como aquele velho proprietário de terras que, ao lado do leito do filho agonizante, pensa, entre duas orações: “Oxalá minha nora não volte a se casar…”

Muitos estranham esse desfile de homens e mulheres tarados, mas escrevendo sobre a burguesia que conheceu, com a qual conviveu, não poderia o romancista criar personagens banais. “Nossas criaturas — escreveu Mauriac — são formadas de elementos tomados ao real: nós (romancistas) combinamos, com maior ou menor habilidade, o que nos forneceram a observação dos outros homens e o conhecimento que temos de nós mesmos. Os heróis de romance nascem do casamento que o romancista contrai com a realidade”. (Cf. Le Romancier et ses Personnages, Éditions R.A. Corrêa, 7* edição, 1933).

O romancista Mauriac conheceu todos os êxitos literários possíveis (inclusive o Premio Nobel) e somente ficou no esquecimento por ocasião do término da Segunda Guerra Mundial, quando a filosofia e a ficção francesas começaram a trilhar novas tendências, inaugurando caminhos diferentes. O Existencialismo de Sartre, conquistando a desiludida mocidade francesa que voltava das trincheiras ávida de uma nova concepção da existência, pode ser considerado o responsável pela sombra que envolveu Mauriac como romancista, logo após o armistício.

Foi natural que os leitores franceses, envolvidos nos vagalhões de novidades que invadiram a França depois da guerra, se deixassem contaminar pelo Existencialismo, diametralmente oposto à literatura que existia até então. A filosofia e o romance de Sartre apresentaram-se aos franceses como as danças e as músicas representativas da nova vida francesa pós-guerra. O Existencialismo com suas negações, suas recusas, sua desesperada procura da liberdade total num universo sem Deus, foi um excitante para o povo angustiado que renasceu depois da guerra, ansioso para viver uma outra vida, na qual se incluíssem uma nova filosofia e uma nova ficção inteiramente diferentes das que predominavam antes da hecatombe.

Mauriac entrou tarde para o jornalismo que exerceu com severidade e altivez. Em certa oportunidade, falando aos jornalistas estrangeiros, de cuja associação fazia parte, disse ele: “Não podeis imaginar como é maravilhoso acabar a vida como jornalista. Graças ao jornalismo estou vivendo ainda. Sem o jornalismo eu estaria, como tantos homens da minha idade, jogado num porão (…). Eu sou uma velha locomotiva que caminha ainda, que puxa vagões, que pode apitar, acontecendo-me até esmagar alguém! O horror da velhice é não puder servir para nada. O jornalismo me dá o sentimento de poder servir ainda as ideias que me são caras, de servir a fé, e de defender meus amigos…” (Cf. Jean Lacouture. François Mauriac, Seuil, 1980).

Houve quem afirmasse, num excesso de exagero, ter sido o jornalista superior ao romancista, mas tal não é verdade. Foi como romancista que Mauriac recebeu o Prémio Nobel numa época em que esse prémio distinguia os homens de letras realmente grandes e não como atualmente acontece, quando são premiados os mais obscuros nomes da literatura.

Lamentavelmente não há espaço para examinar, nem de leve, as obras que refletem aspectos do catolicismo de Mauriac, principalmente aquelas escritas durante sua crise espiritual sofrida de 1925 a 1931. Abordemos apenas Souffrances et Bonheur du Chretien, Dieu et Mammon e Vie de Jesus. A respeito do primeiro, Mauriac escreveu no prefácio do sétimo volume de suas obras completas ter-lhe sido impossível relê-lo porque suas linhas o queimavam. Recordo-me sempre, aliás, de uma frase escaldante desse livro, frase que lembra Pascal: “Não é a dor em si que reabilita, mas a dor aceita, consentida, sofrida em união com o Cristo, num espírito de penitência e arrependimento”.

Constitui Dieu et Mammon uma resposta de Mauriac a André Cide que, em carta, o reprovara por comprazer-se, embora cristão escrupuloso, na pintura do pecado, possuindo a arte de transformar seus leitores em cúmplices. Segundo Gide, Mauriac procurava a permissão de ser cristão sem ter de queimar seus livros e encontrava a solução do problema num compromisso tranquilizador que permite amar a Deus, sem perder de vista Satanás… Dieu et Mammon é a resposta de Mauriac à “reprimenda” gideana e vale a pena ser lido por causa das verdades que contém.

Vie de Jesus é uma das histórias mais comoventes e vibrantes de Jesus que foram escritas até hoje por um leigo. Longe estamos, por exemplo, de Jesus de Renan, o personagem mutilado pela crítica histórica, mas muito próximos do “Cristo vivo na Igreja, vivo nos Santos e em cada um de nós” (cf. Vie de Jesus, prefácio para uma nova edição, Flammarion, 1936).

Não sei se Mauriac se satisfez ou não com o seu livro, já que, conforme ele disse, “uma vida de Jesus deveria, indubitavelmente, ser escrita de joelhos, com um sincero sentimento de indignidade que nos fizesse cair a pena das mãos” (Cf. Vie de Jesus, prefácio à l1 edição, Flammarion, 1936). Insatisfeito ou não, a verdade é que ele escreveu uma vida de Jesus que nos comove e às vezes nos faz chorar.

Muitos não aceitaram esse livro, porquanto a impressão que eles têm de Jesus não é do retrato feito por Mauriac, isto é, um Jesus “incompreendido e portanto irritado, impaciente, às vezes furioso como o é todo o amor. Mas — acrescenta o autor — sob esta violência à superfície de seu ser, reina profundamente uma paz que não se assemelha a qualquer outra, sua paz como Ele a chama, a paz da união com o Pai” (cf. Vie de Jesus, prefácio da 1ª edição, Flammarion, 1936).

(Em: “Suplemento cultural” do jornal O Estado de São Paulo, 20/10/1985, nº 279)

[O crítico literário católico Alcântara Silveira (1910-1997) colaborou em vários jornais brasileiros do Rio e de São Paulo: Folha da Manhã, Jornal de Letras, A Manhã, O Estado de São Paulo. Ocupou a cadeira 16 da Academia Paulista de Letras. Seu grande conhecimento da literatura francesa valeu-lhe o prêmio Palmes Academiques, concedido pelo governo francês, em 1947, pela publicação da obra Gente da França. Tem vários livros publicados.]

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