Evo Morales e Papa Francisco

[Em 16/09/1978, um mês e pouco depois da morte do Papa Paulo VI e alguns dias antes da morte do Papa João Paulo I, o finado Jornal da Tarde, do grupo Estadão, publicou uma ampla matéria sobre a situação da Igreja Católica, resultado de uma mesa-redonda, composta de membros do clero, teólogos leigos e coordenada pelo jornalista e escritor Lenildo Tabosa Pessoa, sob o título geral de “Para onde caminha a Igreja?” O texto que segue é a fala inicial do Monsenhor Emílio Silva, espanhol radicado no Brasil, que foi professor de filosofia em várias universidades cariocas e autor de muitos livros, entre os quais Filosofias da hora e filosofia perene, editada em 1990 pela GRD].

O tema, tal como está formulado — para onde vai a Igreja? — requer uma pequena glosa. Se for tomado simplesmente, não há a menor dificuldade. A Igreja, todos sabemos, é a sociedade instituída por Jesus Cristo Nosso Senhor, para a perpetuação e continuação de sua missão redentora no mundo e é constituída pelo Povo de Deus, que vive mais ou menos em forma social governado por leis e hierarquia. A Igreja é o corpo místico de Cristo. De natureza escatológica, constituída pelo Povo de Deus, que busca, afanosa e constantemente, fins transcendentes, fins sobrenaturais, que superam a todos os outros fins humanos.

A Igreja caminha, desta forma, entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus, até a consumação plena. Nesse sentido, penso que não haveria discussão nenhuma. Onde vai a Igreja? Continuar a sua missão sobrenatural.

Na verdade, reunimo-nos aqui para algo conflitivo. Parece que esta pergunta encerra alguma outra dificuldade. Eu a exporia com uma ideia bastante engenhosa de um grande escritor famoso, filósofo católico da atualidade, Rafael Gambra, aqui talvez pouco conhecido, que dizia, há pouco, que se dá um fenômeno muito raro na Igreja, atualmente, muito semelhante, mas em ordem inversa, ao cisma medieval. No cisma medieval, ou de Avinhão, havia dois papas e uma só Igreja. Na atualidade, temos duas igrejas e um só papa. Como duas igrejas? Sim. Realmente, diz ele, há uma igreja modernizada, liberal, divorcista, ecumênica e muito pró-marxismo. Esta igreja é a que tomou grande parte, hoje, da opinião pública em muitos lugares, especialmente de certos meios intelectuais.

Ao lado desta, temos a Igreja que diríamos tradicional, em grande parte marginalizada, mas que se mantém ainda no coração e na alma de grandes personalidades de sabedoria e de santidade e também em grande parte fiel do povo cristão. De maneira que, neste sentido, francamente, teríamos duas igrejas. E acho que é este o sentido que poderia tomar agora o nosso diálogo.

Etiquetar é algo perigoso, mas, para nos entendermos melhor, chamaria igreja progressista a primeira e igreja convencional a outra. Então, para dizer para onde vai a Igreja, teríamos que distinguir perfeitamente esses dois aspectos. De fato, a chamada igreja progressista é a que dá a impressão, hoje geral, de que a Igreja está numa crise grave. Esta crise, naturalmente, não se pode negar, porque está à vista de todo mundo. Por exemplo, o falecido Santo Padre declarou diversas vezes que estava em franca demolição a própria Igreja e até dizia que a fumaça de Satanás havia entrado nela.

Logo, isto é inegável. Isso aparece em uma série de aspectos. Um dos aspectos mais notáveis e mais impressionantes é precisamente o da fé. Há uma modernização terrível em que se vai deixando de lado, em grandíssima parte, o magistério infalível da Igreja. Esta é, talvez, a causa maior desta crise.

Eu disse uma vez, falando das seitas protestantes, que o denominador comum, sem o qual não subsistiriam, é sempre a negação do primado pontifício. Se as seitas dissidentes admitissem o primado pontifício, a soberania pontifícia, estariam resolvidos todos os problemas e não haveria mais dificuldades. Também nesse ponto da fé, é a mesma questão.

A igreja progressista, sem dúvida nenhuma, aspira à conformação da igreja com os tempos. Fazer com que toda a sua ação se acomode aos sinais dos tempos. Isto é que lhe dá essa cor de mundanização. Não é toda a Igreja que toma este caráter de mundanização e pró-marxismo, mas esta igreja progressista não admite outro critério de verdade além da própria consciência e na base de uma teologia, como se diz hoje, também horizontal, em que diviniza o homem e o homem vem a ser, como nos tempos de Protágoras, a medida de todas as coisas.

Depois, se valem, os mais extremados, de um verdadeiro sofisma, que é o que Rahner comumente chama a tradução da dogmática da doutrina tradicional para a linguagem moderna. Este ponto vem do modernismo, que adquiriu grande força, mas, com Pio X, ficou muito abafado. Mas começou a levantar a cabeça outra vez, nos anos de após guerra. Pio XII quis pôr-lhe remédio também, com aquela notabilíssima encíclica Humani generis. Vários de seus expoentes ficaram proibidos até de ensinar e seus livros de serem estudados pelos discípulos, nos seminários. Mas João XXIII levantou grande parte disso e então, no concilio, eles tomaram grande força e foram, diríamos, em certo sentido, articulando isto que hoje está aí, com tanta força como nos tempos de Pio X.

Uma das coisas que os modernistas costumam dizer é que as fórmulas, tais como se usaram, são ininteligíveis. Causa-me riso um homem como, por exemplo, o padre Congar, com sua sabedoria, dizer: “Hoje é impossível a linguagem dos concílios, a linguagem das encíclicas. A linguagem do Credo do Povo de Deus, de Paulo VI, é ininteligível para o homem da cultura moderna”.

O padre Rahner, que é um dos deuses dessa escola progressista, não é dos mais extremados, porque ficou um pouquinho, diríamos, ultrapassado por outros. Mas teve coisas quase risíveis. Tem um longo artigo na revista Concilium — aliás, essa revista tem sido o órgão principal dessa igreja progressista — publicado há dez anos, sobre a tradução, diríamos (ele usa a palavra), dos dogmas e da doutrina católica em linguagem moderna. Isso me faz rir, porque ele diz: “Como vamos agora falar ao povo sobre as pobres almas do purgatório, se o povo não sabe nem o que são almas, nem o que é purgatório? Falamos, diz ele, da Ascensão do Senhor, e isto não inspira a fé em Cristo”.

Ele chega a coisas hilariantes. Diz: “É costume falar da pena temporal. Como? Isso leva o povo à noção de que essa pena deve ser algo como uma prisão, uma prisão de uns quatro meses numa prisão provisória. Não seria melhor, em vez disso, diz ele, em vez de falar de pena temporal, falar de uma neurose torturante, que, depois de terem sido perdoados os pecados, fica atormentando a pessoa daquela maneira”?

Isso é hilariante também por outra questão. Esta igreja que diríamos progressista, está constantemente repetindo que o povo cristão hoje é um povo adulto e não se deve falar essa linguagem. Entretanto, esta forma de expor a doutrina supõe o povo de agora muito menos inteligente do que o de gerações passadas, que entendia perfeitamente essa linguagem e não tinha dificuldade alguma.

Para onde vai a Igreja? Naturalmente, se seguíssemos este caminho, iríamos para a demolição da Igreja, porque o mais grave de tudo é quando há claudicação na fé. Isto aparece hoje em todo lugar. A diminuição da fé, o crescimento do ateísmo e, em muitíssimas partes, por causa da deficiência de aceitação do magistério.

A igreja progressista pôs à margem e não fala do Credo do Povo de Deus e está esperando um novo Concilio, que o reforme. Na visita que lhe fizeram, há dois meses, os cardeais, no dia de seu onomástico, Paulo VI disse: “Como vedes, o de que necessita a Igreja, a nível tanto de fiéis como de pastores, é manter-se numa atitude de autêntica fidelidade.” Isto é o que pedia, que é, naturalmente, a negação da igreja progressista, que segue sempre as orientações de Hans Kung. Parece que o companheiro ao lado (padre Terra) escreveu alguns artigos sobre Hans Kung. Ele tem muitos sequazes, inclusive em nossa Universidade Pontifícia no Rio de Janeiro, que tomaram seu livro sobre a Igreja como livro escolar. Hans Kung sabe que o mais notável nele é a negação e um combate constante ao magistério. De maneira que o papa pedia, antes de morrer, o seguinte: manter-se numa atitude de autêntica fidelidade. Tal atitude baseia-se num conhecimento profundo da história da Igreja, que desconhecem, com muita frequência, os progressistas. Supõe dotes de perspicácia e de discernimento na valorização do tempo presente, exige a virtude da humildade que permite recorrer continuamente à luz de Deus, buscar a união com aqueles que o Espírito Santo constituiu como pastores. Isto nada tem em comum com o subjetivismo, que é o princípio básico do progressismo, que despreza o passado com a inovação Ilusória e com manobras publicitárias.

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