Notre Dame em chamas

A primeira missa celebrada pelo arcebispo de Paris, Michel Aupetit, na catedral de Notre-Dame, depois do incêndio de 15 de junho, deu origem a reações altamente reveladoras, sem dúvida mais reveladoras da profunda descristianização do país do que muitas demonstrações teóricas. Porque o que estava em questão, enfim, era o próprio princípio da celebração da Missa neste santuário devastado. Em outras palavras, sobre a conveniência ou não de celebrar-se ali o culto para o qual aquele templo foi construído. Que as pessoas estranhas à fé católica não vejam na Presença real nenhuma utilidade,  é normal. Mas que uma tal questão surja entre os cristãos, é particularmente sintomático da descristianização dos próprios cristãos. Georges Bernanos escreveu, antes da guerra: “Repetimos constantemente, com lágrimas de desamparo, preguiça ou orgulho, que o mundo está se descristianizando. Mas o mundo não recebeu o Cristo — ‘non pro mundo rogo’ [não rogo pelo mundo] —; Deus se retira de nosso coração; somos nós que, miseráveis,  nos descristianizamos! (“Nous autres, Français”, em Scandale de la vérité, Points/Seuil, 1984).

O mistério insondável da Eucaristia. O sinal infalível da descristianização dos cristãos é a relativização da importância central da Missa em toda a vida cristã, começando com o sacerdote. Toda perda de fé na Eucaristia conduz, inevitavelmente, a situações de crise ou declínio. Não é à toa que o Concílio Vaticano II afirmou que a liturgia era “o ápice e fonte da vida da Igreja” (Constitution Sacrosanctum concilium, 1963, n. 10). Cristo, segunda pessoa da Trindade, viveu entre os homens, admirável mistério; e ele nos deu a Eucaristia para que possamos encontrá-Lo ali, em nosso meio, seja qual for o lugar e a época. Será que percebemos o que significa ter o próprio Cristo verdadeiramente presente diante de nossos olhos, sob as espécies eucarísticas? É um mistério tão admirável, que não deveria deixar de nos surpreender, se tivéssemos um pouco mais de fé e não estivéssemos tão cansados…

É por isso que a Eucaristia é absolutamente vital para a vida cristã — é o lugar privilegiado onde realmente encontramos o Cristo  em pessoa —; também por isso que é sempre aconselhável cuidar dela, e torná-la cada vez mais bela e mais orante — adoração prestada ao Deus vivo que se encarnou entre nós, e que deve refletir, por seu esplendor e sua sacralidade, este mistério insondável (Saint Jean-Paul II, Ecclesia de Eucharistia, 2003, n. 48-52).

O que hoje chamamos de “secularização”, como bem disse Bernanos, mais do que os ataques do “mundo” à Igreja (que certamente existem), não é antes de tudo a consequência do declínio da fé cristã e, em particular, da fé na Eucaristia? Nesta era onipresente, em que muitas vezes nos perguntamos como é que chegamos até  aqui — a ponto de, por exemplo, não se saber mais como diferenciar um homem e uma mulher, ou entre um ser humano e um animal, para não mais ver no aborto, totalmente banalizado por causa de nossas consciências anestesiadas, um “crime abominável” (Vaticano II); ou não ficar escandalizado que a criança se torne, com o PMA e o AGP, um simples objeto de desejo que pode ser comprado em um supermercado — talvez devêssemos pensar sobre nossos próprias responsabilidades como cristãos. Porque, no final das contas, é a eliminação de Deus de nossas vidas e de nossas sociedades que, ao banir a própria noção de limite, liberou a arrogância prometeica que dorme em cada um de nós.

Horizontalismo e descristianização. Assim, todos aqueles que na Igreja, já por muito tempo, trabalham para secularizar tudo, achatar ao máximo o sobrenatural, dessacralizar tudo o que é possível, sistematicamente favorecendo a horizontalidade em detrimento da verticalidade, especialmente na Liturgia, de fato contribuíram muito mais efetivamente, para o grande movimento de secularização das sociedades ocidentais, do que os mais cruéis opositores do cristianismo. E no momento em que se deve tomar atitudes efetivas contra o “abuso sexual” na Igreja, não será certamente a secularização da figura do padre que resolverá o problema: isso só agravaria a secularização dos próprios cristãos.

Está no DNA do cristão cuidar dos pobres e preocupar-se com o problema da justiça. No entanto, se isso é feito em detrimento do primado da vida interior, da oração e da Missa, corre-se o risco de perder-se o essencial: a caridade. Quantos padres deram prioridade ao “social”, desprezando a Eucaristia, e, absorvidos pelas lutas do mundo, acabaram abandonando o sacerdócio? Santa Madre Teresa sempre disse que o sucesso de seu trabalho de caridade era, antes de mais nada, o enraizamento de suas freiras na oração contínua e na Missa diária. Esse é o segredo da “eficácia” cristã segundo critérios não mensuráveis pelas estatísticas!

A renovação na Igreja não deve passar por novos “métodos” de evangelização derivados do marketing, mas através de um retorno ao essencial em nossas vidas: oração e Missa. O resto nos será dado por acréscimo, e nossos compromissos civis, óbvia e absolutamente necessários, serão muito mais proveitosos.

(LA NEF n°316 Julho-Agosto 2019) https://lanef.net/edito/