[O artigo mostra como a nobreza parisiense patrocinava a filosofia iluminista, que contra ela utilizaria, em breve, o menos filosófico de todos os instrumentos: a guilhotina.]
Ao que parece, nenhum outro termo combina melhor com o beau monde parisiense dos fins do século XVIII do que o inventado 200 anos mais tarde por Tom Wolfe, que zombava dos “progressistas” da Park Avenue, por manterem relações com revolucionários negros, enquanto representantes do Radical Chic. De fato, o Faubourg St. Germain e o Faubourg Saint Honoré em moda nos dias de Luis XV e Luis XVI foram palco dessa espécie de “culto do cortiço” em uma escala muito maior do que os beaux quartiers de Nova York em época recente. Jamais houve um período em que os críticos da ordem estabelecida fossem mais apreciados por seus beneficiários. No ano que marca o bicentenário da Revolução Francesa, seria válido refletir sobre a ironia desse relacionamento — interrompido por uma revolta que pôs fim à ordem estabelecida e foi estimulada por seus críticos.
Os intelectuais constituem uma classe que sempre gozou de muito mais prestígio social na França do que em qualquer outro lugar. O historiador e filósofo escocês David Hume, recém-chegado de uma Grã-Bretanha onde o grande dr. Johnson tinha muitas razões para reclamar da atitude arrogante dos benfeitores, tais como o conde de Chesterfield, foi arrebatado pela recepção que teve em Paris nos fins da década de 1750. “Aqui”, escrevia ele para um amigo, “como somente ambrosia, bebo nada mais do que o néctar e respiro somente o incenso”. Quando Voltaire, depois de longos anos de exílio, retornou a Paris em 1778, as boas-vindas que recebeu foram próximas do delírio. Tal era seu imenso prestígio, observava um contemporâneo seu, que jovens damas ao serem apresentadas a ele “empalidecem, começam a se sentir mal, caem em seus braços, gaguejam, rompem em prantos”.
Naturalmente o grande homem das letras francesas, cujo talento para a administração de negócios particularmente trapaceiros o enriquecera a ponto de ele poder associar-se com a nobreza, era um inimigo da ordem estabelecida somente em suas hostilidades contra a Igreja. E em sua época não havia nada de muito radical nisso. A maioria dos líderes da sociedade parisiense — ao contrário de seus primos pobres da província — havia muito simpatizava com o ateísmo, o agnosticismo e o deísmo de Voltaire. E muitos dos prelados, eles próprios praticamente todos pertencentes à nobreza. também eram essencialmente céticos como o resto do mundo elegante. Poucos, se existiam, eram os membros daquele mundo a darem atenção às advertências de Diderot, o editor da Encyclopédie, a bíblia da Idade da Razão, quando dizia que “assim que os homens lançarem olhares ameaçadores para a majestade do Céu não tardarão a dirigi-los contra os soberanos da Terra”.
Contudo, alguns dos intelectuais aceitos na alta sociedade haviam feito essas ameaças bastante explicitamente. E ninguém mais do que o filho do relojoeiro de Genebra, Jean Jacques Rousseau, que na década de 1750 se tornou o bem amado dos salões e, na de 1760, o favorito de grandes personalidades do reino — duques, príncipes reais e mesmo ministros do rei, homens como o conde Malesherbes, que atuava como o principal crítico do regime. Que esses nobres ficassem orgulhosos de compartilhar a amizade de Voltaire, o filho do notário, era bastante compreensível. Ele não somente vivia em grande estilo e, tendo frequentado uma escola para jovens de sangue azul, sentia-se à vontade no mundo aristocrático, em cujo entretenimento predileto sabia como se comportar — conversação fluente, polida, elegante. Mas Rousseau, um estrangeiro, autodidata, segundo ele mesmo “bronco” e “grosseiro”, assustadoramente sensível e delicado, estava penosamente deslocado na sociedade sofisticada que o recebeu pela primeira vez pela força de um ensaio em que glorificava o “selvagem nobre” e no qual ele denunciara veementemente sua moral e suas maneiras.
Ele relembraria mais tarde em suas famosas Confissões que as damas “empregavam inúmeros estratagemas para que jantasse com elas” e “quanto mais rude eu era com as pessoas mais elas insistiam”. Uma delas, a marquesa de Epinay — “muito refinada, muito bela” e tão “achatada nos peitos” que não podia possivelmente “interessar-me por ela como mulher” —, foi mesmo bastante longe e reformou um chalé em ruinas nas propriedades de seu marido para que ele pudesse usufruir de um retiro no campo. E quanto mais ele denunciava a classe a que ela pertencia, mais seus membros, das mais altas camadas sociais, insistiam com a pródiga hospitalidade de seus palácios ou mansões em Paris.
Trocando o papel de moralista sério, no estilo de Savonarola, por aquele de guerreiro fanático, ele fulminava os ricos em um estilo digno de Lenin: “Posso provar que, se temos alguns poucos ricos e homens de grande poder no pináculo da fortuna e da grandeza, enquanto as massas arrastam-se na privação e na obscuridade — é porque o primeiro deixaria de ser feliz no momento em que o povo deixasse de ser miserável”. Eles eram como “lobos famintos que, tendo experimentado da carne humana uma vez, recusam qualquer outro alimento”. Todas as ‘”vantagens da sociedade eram exclusivamente para os ricos e poderosos (…) mesmo os assassinatos cometidos pelos grandes são silenciados, mas se um homem ilustre é roubado ou insultado, toda a força policial imediatamente entra em ação”.
Longe de indispor os “lobos famintos”, esse tipo de coisa parecia somente fazer Rousseau ser mais apreciado por eles. Do Ermitage, onde usufruiu da hospitalidade da marquesa de peito achatado, ele foi promovido para o petit château, uma “encantadora morada”, nas propriedades de um duque. A duquesa, Madame de Luxembourg, era uma das melhores anfitriãs da época e reconhecidamente sua arbiter elegantiarum. Ela venerava Rousseau a tal ponto que, como ele escreve nas Confissões, “abraçava-me dez vezes por dia”. Lendo-se algumas das cartas que ela lhe enviava, pode-se muito bem acreditar nisso: “Eu gostaria de passar minha vida inteira com você, acredito em sua superioridade, que respeito e amo (…) não há mais nenhum momento em minha vida em que não sinta sua falta, anseie por você e o ame”. O duque não era menos entusiasmado. “Como pode duvidar”, escrevia ele de Versalhes, “que eu pense em você mesmo estando na Corte? Gostaria de poder estar sempre em Montmorency com você. (…) Em Paris e em Versalhes a duquesa e eu estaremos falando de você, e nossa única disputa será em torno de qual de nós o ama com mais ternura.”
Onde quer que o duque e a duquesa governassem, seu séquito naturalmente os acompanhava, de modo que Jean-Jacques pôde assim introduzir um parágrafo nas Confissões, escrito como uma espécie de apresentação da corte, relacionando pelos nomes um príncipe, um duque, duas duquesas, um marquês e duas condessas, mais “outras pessoas dessa condição” que foram visitá-lo. A deferência que lhe mostravam era das mais notáveis, visto que recebiam estranhamente pouca gratidão por isso. Pelo contrário, os intelectuais da moda na época, objetos daquilo que um memorialista do período mencionou como “veneração que muitos dedicavam à espécie de homens de sacerdócio em que os letrados haviam se transformado”, freqüentemente se inclinavam “a falar somente em tons altivos aos homens ilustres que se sentiam honrados de recebê-los em seu meio, retribuíam a seus jantares com uma insolência que somente aumentava o respeito que sentiam por eles”. Ninguém era melhor nesse jogo do que Jean-Jacques, como pôde comprovar Madame de Luxembourg por seu próprio empenho, quando, ignorando a recusa dele em receber presentes, deu a Thérèse Levasseur, governanta e esposa consensual do filósofo, um vestido de presente. “Você tem tanto desprezo por mim que acha que pode me vencer dessa maneira?”, esbravejou ele. Do mesmo modo, uma marquesa que lhe explicara humildemente que “meu apego por você nada tem a ver com seu gênio sublime; não posso alcançar tais alturas”, mas depois provocara-lhe desagrado, passou por momentos difíceis para poder reaver-lhe a estima. “Oh, quanto tempo levará para que recupere a boa opinião que eu tinha de você!” Longe de se rebelarem, essas grandes damas aceitavam tudo sem hesitação. Implorando por clemência por ter enviado a Thérèse somente um vestido muito feio”, a duquesa continuou: “Você me ameaça de não mais me amar. (…) Mas, apesar disso, eu o amo do fundo do meu coração e lhe asseguro que nunca mudarei”.
Como já foi mencionado, não eram apenas essas eficientes ditadoras da moda, as anfitriãs que reinavam nos salões, que veneravam a intelligentsia da época. Quando Diderot teve transtornos com as autoridades e seus cômodos foram vasculhados para a busca de papéis incriminadores, foi o ministro do rei responsável pela censura que os escondeu para ele, da mesma forma como mais tarde ajudou Rousseau na preparação do livro que valeu àquele uma ordem de prisão emitida pelo establishment. E nessa funesta ocasião foi o próprio primo do rei, o príncipe de Conti, que o preveniu a tempo de fugir do país, com uma carruagem e cavalos postos à sua disposição pelo duque. Esse não foi o último dos serviços prestados pelo príncipe a seu protegido. Cinco anos mais tarde, quando ainda sob a ameaça de prisão voltou à França, Rousseau pôde permanecer secretamente durante um ano como hóspede em um dos magníficos palácios do príncipe. Seu anfitrião real não estava menos disposto a suportar suas maneiras peculiares do que o casal de duques estivera. Só havia uma razão, dizia, para não ter demitido os serviçais de quem Rousseau começara a reclamar: “Você me disse que não devia fazê-lo, mas será feito no momento em que o permita”.
O que foi dito é suficiente para demonstrar que, embora até os mais bem-sucedidos intelectuais permanecessem pobres e fossem consideráveis os riscos profissionais enfrentados pelos escritores, o prestígio usufruído por eles era tão grande a ponto de compensar todas as desvantagens vinculadas à atividade. Cortejados pelos monarcas, como Voltaire, e Rousseau, por Frederico o Grande, e como Diderot, por Catarina a Grande, esses leões literários gozavam de aclamação e glória maiores do que qualquer um de seus colegas conheceram antes ou depois. Além disso, como um dos mais esclarecedores memorialistas do período, o conde de Ségur, retratava: “Mesmo os intelectuais do segundo ou terceiro escalão eram muitas vezes tratados com mais respeito do que a nobreza das províncias”. E, acrescentava o secretário da Academia Francesa, o Sieur Duclos, “mesmo aqueles entre os nobres que realmente não levam em consideração os intelectuais fingem fazê-lo porque está na moda'”. Um certo duque de Gastries revelou-se um corajoso caipira ao exclamar petulantemente, quando lhe contaram sobre a discórdia entre Diderot e Rousseau: “Ouço falar somente sobre esses dois homens. Imagine! Gente sem importância vivendo em apartamento de terceiro andar!” A moda da época não era somente a de sentar-se, independentemente de quão nobre se fosse, aos pés desses homens, mas também a de aceitar suas idéias ou, de qualquer maneira, fingir compreendê-las. “O iluminismo”, relembrava Ségur, “fizera tanto progresso que as classes privilegiadas eram as primeiras a pedir desculpas pelas vantagens que gozavam”. Os intelectuais, dizia outro aristocrata, “não tinham seguidores mais dispostos do que os grands seigneurs. O horror de abusos, o desrespeito para com distinções hereditárias, todos esses sentimentos que as classes mais baixas exploraram em seus próprios interesses, (…) deviam seu primeiro germe aos aristocratas (…) com alguns deles a exaltação chegava à ilusão cega”.
É de se imaginar os pensamentos que podem ter passado pelas cabeças dos nobres, enquanto as carroças que os levavam para a última jornada chacoalhavam pelas pedras do calçamento da Paris dominada pelo Terror. Terão os homens como Malesherbes, em cujo pescoço a lâmina ensanguentada caiu depois de ele ter visto as cabeças de sua filha mais velha, de seu genro e de dois netos rolarem para dentro do terrível cesto — terão eles amaldiçoado a memória dos escritores que exaltaram no passado e que eram então aclamados como os santos padroeiros da Revolução? Tudo o que se sabe é que os sobreviventes do Terror que escreveram algo geralmente não responsabilizaram os intelectuais. Ségur, ao reexaminar o abismo sangrento que separava a nova era daqueles velhos bons tempos, que Talleyrand lembrava como perfumados com uma singular dou-ceur de vivre, escrevia em tons de homem mais sábio e mais triste, mais autocrítico do que repreensivo ou amargurado: “Sem nenhuma nostalgia pelo passado ou ansiedade em relação ao futuro, nós os jovens nobres alegremente caminhávamos sobre um tapete de flores que escondiam um abismo, caçoando das modas antigas, da vaidade feudal e da etiqueta solene de nossos pais. (…) retendo ainda, em nossos palácios, alguns remanescentes de nossos antigos feudais, usufruindo na Corte e na cidade os privilégios de nossa posição (…) e no entanto livres para misturarmo-nos com todos os homens e assim experimentar as delícias da igualdade (…) tudo conspirava para fazer nossa juventude feliz. (…) Seguíamos entusiasticamente os audaciosos escritores. Éramos arrebatados por Voltaire, nossos corações eram sensibilizados por Rousseau. Sentíamos um prazer secreto em vê-los atacando (…) nossos privilégios. (…) Sua pequena guerra nos encantava. (…) Era afinal somente uma guerra combatida com pena e papel que, pensávamos, dificilmente poderia causar qualquer dano real ao privilegiado modo de vida que, tendo sido nosso durante séculos, acreditávamos ser indestrutível. Ríamos do alarma sentido na Corte e pelo clero. (…) Nunca houve um despertar mais terrível precedido por um sono mais agradável e por sonhos mais sedutores”.
Eram visões compartilhadas pelos intelectuais e pelos aristocratas, nenhum dos quais remotamente previra, muito menos desejara, o pesadelo que surpreendeu o sonho de uma ordem nova, humana e liberal. Ninguém ficaria mais horrorizado do que Rousseau, tivesse ele vivido por mais quinze anos, ao ver o crepúsculo vermelho sanguíneo que encobriu tão cedo a aurora da liberdade — quando, como Wordsworth entusiasmava-se, era “uma benção… estar vivo”. Não reprovara ele a invocação do salut public para justificar a carnificina como “uma das mais execráveis regras que a tirania já inventara?” Não ousara escrever que “a liberdade de toda a raça humana não xale o sangue de um único ser humano?” Realmente, era, como ele mesmo admitia, “o homem mais obediente à lei no mundo com grande aversão por revoluções”, pelo menos porque “os povos que fazem revoluções quase sempre acabam por se submeter a sedutores que somente tornam seus grilhões mais pesados”. Esta a razão das palavras de alerta que pronunciava já em 1756: “Pense no perigo de se colocar as massas em movimento (…) quem poderia controlar o choque ou prever os efeitos?”
Nessas percepções sobre o que “a pequena guerra combatida com pena e papel” poderia desencadear, ele mostrou-se mais previdente do que seus amigos aristocratas, inteiramente despreparados, como provaram, para o “terrível despertar”.
Mas o que mais, perguntava um dos sobreviventes, podia se esperar? “Como poderia alguém prever”, escreveu Ségur, “que a explosão de paixões e crimes em uma época em que todos os escritos, todas as palavras e todas as ações visavam somente a extirpação do vício, a propagação da virtude, a abolição do governo arbitrário? (…) Era impossível para nós não abraçar entusiasticamente a esperança que homens de gênio nos traziam de um futuro em que a razão, a humanidade, a tolerância e a liberdade imperariam”.
Quaisquer que fossem as consequências era uma esperança nobre e, além disso, muitos dos beneficiários aristocratas desses “homens de gênio” provaram estar dispostos a pagar duas vezes mais para que fosse bem-sucedida, nos Estados Unidos com suas vidas, e na França com a renúncia de seus privilégios. Radical chic ou não, talvez mereçam mais do que nosso escárnio.
(In Suplemento “Cultura”, jornal O Estado de São Paulo, 13/05/1989. Jakob Herman Huizinga é filho do grande historiador holandês Joan Huizinga, autor do célebre Outono da Idade Média. Huizinga-filho é autor de The making of a saint: the tragicomedy of Jean-Jacques Rousseau, sem tradução para o português).
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