As coisas devem ser muito piores do que se imagina quando saem, no mesmo dia, uma declaração muito fundamentada de um cardeal — Brandmüller — , dizendo que o Instrumentum laboris do Sínodo amazônico é herético, e um fragmento de uma entrevista com o Papa Bento XVI, na qual o Pontífice emérito pede a unidade na Igreja. Como se isso não bastasse em um único dia, outro cardeal, também alemão, Kasper, diz que o Papa Francisco permitirá que cada Conferência Episcopal decida se quer ou não padres casados. Finalmente, ponto culminante de um coquetel poderoso, um grupo de padres alemães — percebe-se que é ali, na Alemanha, que se joga a parte mais difícil da partida — não hesitou em publicar uma nota acusando o pontífice de ir contra a lei de Deus, em seus ensinamentos sobre o casamento.
As coisas devem ir mal, repito, para que o papa Bento tenha que tomar a iniciativa de auxiliar seu sucessor, ao pedir, indiretamente, que não se tensione mais a corda para que não se rompa. Diante disso, devemos fazer duas perguntas: quem tensiona essa corda, causando o risco de cisma? E, o que é mais importante, até que ponto devemos transigir, para que não rompa?
Imagine-se uma situação totalmente contrária à atual. Imagine-se, por exemplo, que a maioria dos bispos e padres promove a missa em latim e perseguem aqueles que querem celebrar e participar de uma missa celebrada em língua vernácula, a tal ponto que, em muitas dioceses, isso se torne impossível; as mulheres devem ir à Santa Missa com véu e, para receber a comunhão, é necessário fazer três horas de jejum, ajoelhar-se e receber o Senhor na boca. Na Igreja, é proibido aplicar qualquer tipo de exceção às normas morais e, acima de tudo, insiste-se que não se pode receber a comunhão, se não se está na graça de Deus. Além disso, o diálogo ecumênico é condicionado pela clara afirmação de que todos os que não são católicos vão para o inferno, porque fora da Igreja não há salvação. Para piorar a situação, a comunhão é proibida aos eleitores de partidos abortistas e não apenas aos políticos que aprovam essas leis. Essa excomunhão também se estende aos eleitores de todos os partidos que carregam, em seu programa, algum tipo de concessão à ideologia de gênero. Naturalmente, a única razão para a anulação do casamento seria que o casamento fosse realizado sob coerção violenta, ou que não tivesse sido consumado por um dos cônjuges se recusar a ter filhos. Para controlar a taxa de natalidade, apenas métodos naturais poderiam ser usados, reservando o uso desses meios apenas aos maridos que já têm um alto número de filhos. Quanto aos religiosos, eles seriam obrigados não apenas a cumprir rigorosamente os votos, mas a usar seu hábito nas ruas e a fazer pelo menos duas horas de oração diária, sendo expulsos da Igreja todos aqueles que não obedecessem a essas ordens. As escolas católicas deveriam ter um ideário claro, onde as aulas de religião fossem obrigatórias, assim como a Missa diária; apenas os professores que se identificassem com a doutrina católica, e procurassem praticá-la, poderiam ser professores desses colégios. Rádios católicas e televisões deviam colocar a Santa Missa e o exercício do Rosário em horário nobre, reduzindo os esportes a horários marginais.
Tenho certeza de que a grande maioria diria que esta seria uma situação intolerável; e muitos (com bispos e cardeais à frente) ameaçariam com cisma, caso essas leis não fossem alteradas; e, evidentemente, levariam a ameaça a seu cumprimento. Além disso, é também certo que, se esse cisma ocorresse, se considerariam culpados não os que deixassem a Igreja, mas os que impuseram aquelas duras medidas.
Pois bem, algo do tipo, mas só que ao contrário, está acontecendo agora. A missa em latim no rito antigo, que foi válida por muitos anos, é proibida em muitos lugares, apesar de ser oficialmente permitida. Também, em muitos lugares, as exceções às normas morais tornaram-se uma desculpa para que comungue qualquer um que o queira, sem que se confesse e até mesmo sem reconhecer que esteja em pecado, dispondo-se a emendar-se. Há países — disse o cardeal Kasper — onde já podem comungar tanto os que convivem sem casar-se na Igreja, como os protestantes, porque seus bispos decidiram que assim fosse. O diálogo ecumênico e inter-religioso parece ter chegado a um nível tal, em que não se sabe mais qual é a diferença entre um católico e um que não o seja, na hora de seguir a Cristo ou alcançar a salvação. Muitas escolas católicas são lugares onde se perde a fé; e existem universidades, como a Católica de Lima, que organiza cursos para ensinar mulheres a se masturbar, com o sugestivo título de “Conquiste o seu mamão” — um programa que foi suspenso no último minuto, por intervenção dos bispos peruanos, após o clamoroso protesto dos fiéis.
E se isso está acontecendo, é de se admirar que alguns digam que o cisma já tenha ocorrido, e que vivemos, há muito tempo, em uma Igreja que só nominalmente mantém sua unidade? É de se admirar que muitos daqueles que pensam assim, reconheçam que já não se pode mais suportar a situação e estejam pensando seriamente em romper com esse tipo de Igreja?
Há que ceder antes de romper. Mas até quando? A aprovação do sacerdócio feminino será a linha vermelha? Esta linha acaso já não se cruzou com a generalização, na prática, em muitos lugares, da comunhão dos divorciados recasados, ou daqueles que vivem sem se casar, ou com a permissão para protestantes receber a comunhão, como ocorre em países como a Alemanha?
Acredito que, na vida, é preciso suportar muito e ceder muito antes que a corda arrebente, pois considero a unidade como o primeiro atributo do Deus Trinitário. Mas não em troca de nada. A Igreja poderia ter evitado a ruptura de Lutero, se ela tivesse aceitado o que ele ensinava. Ou a ruptura com os ortodoxos, séculos antes. Ou a ruptura com os veterocatólicos, séculos depois. Mas ela não o fez, porque considerou que existem preços que não podem ser pagos. Concordo plenamente com o Papa Bento XVI, e acredito que devemos amar e obedecer ao Papa Francisco, rezar muito por ele e pela unidade na Igreja. Mas, ao mesmo tempo, devemos dizer àqueles que se dizem amigos do Papa, e que estão esticando a corda até o limite, aquela frase que Cícero pronunciou e entrou para a história: “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia Nostra?” (Até quando abusarás, Catilina, de nossa paciência?)
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