“Suportai as demoras de Deus!” (Eclesiástico, 2, 4)
Seu Tião, meu finado vizinho, gostava de contar um causo — e sabia fazê-lo muito bem. Foi peão de boiadeiro até perto da Segunda Guerra Mundial, buscou boi no Mato-Grosso e Goiás, amansou burro xucro. Jamais me esquecerei de uma história que me contou um dia, pouco antes de morrer: tinha um sabor de testamento existencial, em que ele próprio era personagem (não o mais importante, como verá o leitor).
Penso, às vezes, que todos nós somos personagens desta história… Nela, o velho Tião ainda era o moço Tião, e ajudava a trazer uma boiada de Sacramento, quando foi escolhido para uma missão especial: encontrar dois bois que se perderam do rebanho — um boi preto e um boi branco.
Seu Tião deixou os companheiros, a boiada e partiu sozinho com a sua mula. Depois de muita busca, deu de tardinha com o boi preto, junto de uma mina d’água. Agradeceu a Deus, armou ali a sua rede e dormiu. No segundo dia, continuou atrás do boi branco: o reverso da medalha. Já tinha a cara e faltava a coroa. Pensou: “Será que o boi branco já não topou com a boiada?” Na dúvida, ficou com a pior hipótese e prosseguiu para o terceiro dia de pesquisa, naquele vasto chão de mundo.
Terceiro dia, coisa nenhuma. Rastreou fazenda por fazenda: e nada de boi branco. Do terceiro para o quarto dia, pernoitou na casa de um velho baiano, que quase não falava e morava sozinho, no meio de umas grotas. Manhãzinha, depois de arrear a mula e atrelar o boi preto para prosseguir na busca, o baiano lhe disse meio distraído, como quem não queria dizer nada:
— Sem querer, o senhor vai achar o boi e a boiada — e mais nada falou.
Seu Tião agradeceu, despediu-se e retomou o caminho, pensando naquelas estranhas palavras do velho: “Sem querer, o senhor vai achar o boi e a boiada”. Já cansado de procurar em todas as planícies, colinas e montanhas do quarto dia, não tendo mais aonde ir, foi afrouxando de leve as rédeas do animal. Era a mula, agora, que indicava o rumo e conduzia o peão perdido.
Pousou num rancho abandonado. E veio mais um dia: era o quinto dia. As veredas subiam e desciam, cruzavam pastos e capoeiras, detinham-se em minas e riachos, mas não levavam ao boi sumido — que era o outro lado do seu disco, a contrapartida do seu destino. Rastreou mais fazendas por toda a extensão do quinto dia, e nada de boi branco.
No fim do sexto dia, parou num beco de caminho, próximo a uma aguada. Armou a rede num galho de árvore e dormiu. Acordou, de manhã bem cedo, com a mula zurrando bastante inquieta. Pegou a arma, instintivamente, e deu um tiro para o alto. Ouviu, em seguida, o toque de um berrante não muito longe dali. Era a boiada de Sacramento. A sua boiada! Voltara, enfim, ao ponto de partida, mas com a tarefa pela metade: faltava o boi branco.
— Você acredite se quiser — me disse ele. — Mas quando olhei pro lugar em que tinha amarrado o boi preto, o que foi que eu vi? O boi branco, junto do boi preto! Um do lado do outro.
Era o sétimo dia. Seu Tião, depois de fazer a sua parte, havia encontrado o boi branco e a boiada sem querer, de uma só vez, como havia profetizado o velho baiano. E, do mesmo modo que Deus, no sétimo dia, descansou da criação do mundo, seu Tião pôde finalmente descansar de sua árdua parceria com o Espírito Santo, que foi o verdadeiro protagonista desta história.
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