Na capa com que Santa Rosa ilustrou o segundo romance do Sr. Cornélio Penna [Dois romances de Nico Horta, Rio, José Olympio, 1939] ainda é a angústia de um olhar que nos envolve, desse olhar aflito de náufrago que Nico Horta passeou pelo mundo, que não o compreendeu nem foi por ele compreendido.

Se o Mistério é um aspecto da obra do Sr. Octavio de Faria, é, por assim dizer, toda a obra do Sr. Cornélio Penna. Não o mistério convencional, artificial, arranjado e insincero dos romancistas de efeito, hábeis em sua arte de divertir leitores — mas o Mistério como o próprio sentido profundo da vida. Já em Fronteira rompera categoricamente o Sr. Cornélio Penna com toda a verossimilhança e com todo o realismo vulgar ou psicológico, que por tanto tempo dominara nossos romances. Afirmava-se ali como uma expressão brasileira dessa família universal dos Hölderlin ou dos Gérard de Nerval, dos Edgard Poe ou das Emily Bronte, que nos transportam constantemente dos limites da realidade às fronteiras da lucidez, a esses extremos em que a natureza toca o seu próprio esgotamento e onde começa o desconhecido, o impenetrável, o invisível e mesmo o mistério da Loucura. Tudo isso, em literatura, ou é detestável e ridículo, quando simples efeito teatral ou “espírita”, ou então é formidável, quando expressão de um conceito integral da vida, que não se contenta com essa pobre verdade linear que alcançamos com a limitação dos nossos sentidos. Os dois romances do Sr. Cornélio Penna, este último aliás (Cornélio Penna, Dois romances de Nico Horta, José Olympio, 1939), muito mais perfeito que o primeiro, nos transportam desde as primeiras linhas a esse plano de realidade profunda que transcende a realidade vulgar.

Nico Horta é vítima de uma “incurável inaptidão para a realidade” (p. 255). O drama da Solidão, que é também o das personagens principais do Sr. Octávio de Faria, ele o vive em seu pobre destino, em sua incapacidade congênita de ser feliz. Filho de um pai que morreu louco, gêmeo de um irmão que parecia a própria expressão do vigor e da normalidade mental e, no entanto, seguiu bruscamente (como o deixa suspeitar o autor, pois a arte do Sr. Cornélio Penna é de nunca afirmar nada e deixar sempre os caminhos abertos às sugestões que apenas lança de leve e de passagem) seguiu bruscamente o caminho do pai. E ele, Nico, ele que tudo parecia levar à loucura franca — ficou apenas a meio caminho, passou a vida, sua vida humilde e trágica, curta e dolorosa, nos limites da razão, nessa zona terrível em que sentimos o mundo vacilar em seus fundamentos e perguntamos angustiados onde é o lado de cima e onde o lado de baixo das coisas… Nico Horta nunca o soube com segurança. E foi essa a dor que sempre o acompanhou. Ansiava pela existência sadia, forte, normal, serena, onde o viço da vida subisse naturalmente do solo ao caule e do caule à flor — e, no entanto, o tremendo fantasma da insatisfação, da dúvida, da negação o perseguiu sempre e lhe fechava sorrateiramente os caminhos em sua frente, a seiva em seu caule. E nunca chegava à Flor…

Tudo isso, que pode parecer apenas extravagância e ter aquela inaptidão do monstruoso à expressão literária superior, por ser apenas a exceção — tudo isso é de uma verdade, de um interesse, de uma vida que coloca o Sr. Cornélio Penna não apenas como um original, mas como um dos mais autênticos e sugestivos poetas do nosso romance. E digo poeta, não para o deslocar da verdade para a fantasia, mas para tentar dizer a qualidade delicadíssima de seus toques de verdade, que, embora muito para lá do realismo, nos dão da vida real uma imagem inesquecível, sugestiva e angustiante. E sempre em pequenos capítulos leves, sutis, concisos, de adjetivação extremamente feliz no seu imprevisto-simples, que é a negação do imprevisto-pomposo dos adjetivadores de profissão, por estética e figuração retórica.

É tão difícil aliás traduzir em linguagem crítica o ambiente e as personagens sem arestas do Sr. Cornélio Penna romancista, como é difícil explicar a sua pintura exclusivamente composta de arestas. Muito mais artista do que o Sr. Octavio de Faria, tem o segredo dos entretons, das alusões sugestivas, da linguagem em forma de eco, das figuras misteriosas e trancadas, dos segredos que vão para o túmulo irrevelados, e acima de tudo dessa aura de ilimitação e de incompreensão de todas as coisas, das paisagens como das pessoas, dos acontecimentos como dos pensamentos, que fazem de seus livros qualquer coisa de inconfundível, de delirante, e, ao mesmo tempo, de paradoxalmente verdadeiro. É o contraste perene, a luta e a nostalgia, entre a complexidade infinita do homem e a infinita simplicidade de Deus.

Tanto no caso do Sr. Octávio de Faria como no do Sr. Cornélio Penna, estamos no extremo oposto ao do romance como simples matéria de expressão estética, social ou psicológica. Estamos em cheio no cerne da vida, no âmago da amarga expiação da Queda.

(Final do artigo publicado em O Jornal, no dia 14 de Janeiro de 1940, pelo crítico e líder católico Alceu Amoroso Lima. O Jornal foi o primeiro órgão de imprensa de Assis Chateaubriand, célebre pelo império jornalístico dos Diários Associados.  Fundado em 1919, O Jornal deixou de circular em 1974.)