Senhor, a noite vem descendo,
A noite vem caminhando,
Nas casas dos homens vão se acender as luzes
E será chegada a hora da ceia
E entre os familiares o pão será dividido.
Senhor, por que não vens comigo
E não contemplas a casa dos homens?
Ninguém nos verá. Por uma vidraça
Descobriremos o mundo dos homens.
Veremos a família reunida. O pai pensativo, a mãe servindo
E os filhos inquietos e impacientes sem saber da hora próxima
Em que terão eles também de presidir e servir
Nas ceias futuras,
Quando a casa se povoar de seres novos,
Convocados para continuar indefinidamente a vida amarga.
Senhor, vem contemplar comigo a casa dos homens.
Vem ver, com os teus próprios olhos,
A segurança que reina na casa dos homens.
Reunidos em torno à mesa familiar,
Parecem não sentir o abismo e o silêncio que os cerca.
Praticam, no breve tempo, como se estivessem na eternidade.
Julgam a casa fundada na solidez
E não sabem, Senhor, e não sentem que a casa do homem
É um navio que avança pelo mar para um destino incerto,
Que a casa do homem é sempre um navio pobre
Em mar traiçoeiro.
Vamos, Senhor, olhar os homens reunidos,
A família do homem reunida na refeição noturna.
A casa está cheia de sombras
Mas a luz de uma lâmpada esconde aos homens
A presença de escuras formas que os velam e cercam.
A lâmpada que preside a mesa esconde
O que só nas trevas se vê e se distingue:
A presença dos desaparecidos, dos antigos,
Dos que pertenceram a gerações já adormecidas,
Aos que se foram e tombaram, como frutos na terra,
Ou velhos, ou colhidos pela Tua própria mão, Senhor, ainda verdes.
Vem, Senhor, contemplar a família do homem.
Vem olhar a retardatária,
A que se esconde da outra noite,
A anciã a quem tudo, o menor gesto, a mais breve palavra,
Faz reviver gestos e palavras que rolaram na morte.
Vem contemplar o recém-vindo, que a voz materna
Acalenta, que a voz materna procura fazer reencontrar o sono,
O seio do sono.
Vem ver, Senhor, o adolescente,
O homem adolescente,
O seu olhar iluminado, os seu passos graves em torno à mesa,
Quando, finda a refeição, a verdadeira noite vai começar.
Vem ver o sorriso com que o adolescente
Ouve a experiência do Pai
Que lhe fala.
Vem ver a mãe, Senhor,
E, assim, recordarás a Tua Mãe,
No Seu tempo na terra.
Vem ver como, na serenidade materna,
Treme o inquieto espírito feminino,
Como uma rosa que o vento estremece.
Vem ver, Senhor, agora que a Tua noite desceu
Dos cegos céus — o homem na sua casa,
O pai de família, o homem cuja forma e espécie
Um dia tomaste, no Sacrifício Remoto.
Vem ver o homem à luz da sua lâmpada noturna,
O olhar do homem, o aspecto do homem na sua descuidada,
Na sua abandonada verdade.
Vem ver o homem no meio do caminho,
Entre os que se foram, entre os desaparecidos
E os que estão chegando.
Vem, Senhor, contemplar a Tua Criatura
Tão ameaçada nesta viagem.
Vem ver a imagem da Tua Criatura, Senhor,
Na sua breve noite sobre a terra.
Vem ver o homem, Senhor, na sua imagem mais pacífíca,
Na sua imagem mais segura,
Quando a noite desce do alto
E, na casa do homem, se acendem as luzes.
(O carioca Augusto Frederico Schmidt — 1906-1965 — integra o grupo dos grandes poetas católicos brasileiros que estrearam nos anos 30. O poema “Senhor, a noite vem descendo” pertence à obra Fonte invisível, Editora José Olympio, 1949)