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A DIREÇÃO DA ALMA – São Boaventura

26 sexta-feira maio 2017

Posted by José Carlos Zamboni in Sem categoria

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I

Antes de tudo, minha alma, é necessário que do bom Deus faças uma idéia altíssima, piíssima e santíssima. A isto chegarás por meio de fé inabalável, meditação atenta e lúcida intuição repassada de admiração.

Altíssima será a idéia que fazes de Deus se fiel, piedosa e claramente crês, admiras e louvas seu poder imenso, que do nada criou tudo e tudo sustenta; sua sabedoria infinita que tudo dispõe e governa; sua justiça ilimitada que tudo julga e recompensa; e se, saindo de ti e voltando de novo e elevando-te acima de ti, com todas as verdades cantas com o profeta: “Regozijaram-se as filhas de Judá pelos teus juízos, Senhor, porque tu és Senhor altíssimo sobre toda a terra, tu és sobremaneira exaltado sobre todos os deuses” (Salmo 96, 8-9).

A idéia que fazes de Deus será piíssima se admiras, abraças e bendizes a sua imensa misericórdia que se mostrou sumamente benigna em tomar a nossa natureza humana e mortalidade, sumamente terna em suportar a cruz e a morte, sumamente liberal em mandar o Espírito Santo e instituir os Sacramentos, principalmente comunicando-se a si mesmo liberalissimamente no Sacramento do altar, para que de coração possas cantar as palavras do salmo: “Suave é o Senhor para com todos e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras” (Salmo 144, 9).

A idéia que fazes de Deus será santíssima se consideras, admiras e louvas a sua inefável santidade e o proclamas, com os bem-aventurados Serafins: “Santo, santo, santo!”

Santo quer dizer, em primeiro lugar, que possui Ele a santidade em grau tão elevado, e com tanta pureza, que Lhe é impossível querer ou aprovar coisa alguma que não seja santa.

Santo, em segundo lugar, por Ele amar a santidade nos outros, de forma que Lhe é impossível subtrair os dons da graça ou negar o prêmio da glória aos que na verdade conservam a santidade.

Santo, em terceiro lugar, por Ele aborrecer tanto o contrário da santidade, que Lhe é impossível não reprovar os pecados ou deixá-los impunes.

Se desta forma pensas de Deus, cantarás com Moisés, o legislador da Antiga lei: “Deus é fiel e sem nenhuma iniqüidade, justo e reto” (Deuteronômio, 32, 4).

II

Depois, dirige o teu olhar sobre a lei de Deus que te manda oferecer ao Altíssimo um coração humilde, ao Piíssimo um coração devoto, ao Santíssimo um coração ilibado.

Um coração humilde deves oferecer ao Altíssimo pela reverência no Espírito, pela obediência nas obras, pela honra nas palavras e nos atos, observando a apostólica regra e doutrina: “Faze tudo para a glória de Deus” (I Cor., 10, 31).

Um coração devoto deves oferecer ao Piíssimo, invocando-O em orações fervorosas, saboreando doçuras espirituais, dando muitas graças para que tua alma sempre mais a Deus “ascenda pelo deserto como uma varinha de fumo composto de aromas de mirra e de incenso” (Cântico dos Cânticos, 3, 6).

Um coração ilibado deves oferecer ao Esposo santíssimo de maneira que não reine em ti — nem nos sentidos, nem na vontade, nem no afeto — algum prazer em deleites desordenados, desejo de coisas terrenas, nenhum movimento de maldade interna, e assim, livre de toda a mácula de pecado, possas cantar com o salmista: “Seja imaculado o meu coração nas tuas justificações, para que não seja confundido” (Salmo 118, 80).

Reflete, pois, diligentemente e vê se tudo isto observaste desde a juventude. Se a consciência to afirmar, não o atribuas a ti mesmo, mas à mercê de Deus e rende-lhe graças. Se, porém, achares que uma ou mais vezes, num ponto ou em alguns, ou talvez em todos eles, faltaste grave ou levemente, por fraqueza, por ignorância ou com pleno conhecimento, procura reconciliar-te com Deus com “gemidos inexplicáveis” (Rom. 8, 26) e, para Lhe mostrar a emenda, reveste-te do Espírito de penitência, para que possas cantar com o salmista penitente: “Porque preparado estou para os açoites, e a minha dor está sempre diante de mim” (Salmo 37, 18).

III

A dor da alma, porém, deve ter dois companheiros para que a purifiquem e aplaquem a Deus, a saber: o temor do juízo divino e o ardor de interno desejo, afim de que recuperes pelo temor um coração humilde, pelo desejo um coração devoto e pela contrição um coração ilibado.

Teme, pois, os juízos divinos que são “um abismo profundo” (Salmo 35, 7). Teme, repito, teme muito para que, embora de algum modo penitente, não desagrades ainda a Deus; teme mais, para que depois não recomeces a ofender a Deus; teme muitíssimo, para que no fim não te afastes de Deus, carecendo sempre de luz, ardendo sempre no fogo, jamais livre do verme. Somente uma vida de verdadeira penitência e uma morte na graça da perseverança pode preservar-te desta infelicidade. Canta, pois, com o profeta: “Trespassa com o teu temor a minha carne, porque temos os teus juízos” (Salmo 118, 120).

Arrepende-te e tem cuidado por causa dos pecados cometidos. Arrepende-te, aconselho, arrepende-te muito, porque por eles aniquilaste todo o bem que de Deus recebeste [Nota do tradutor: “Trata-se do pecado mortal, que destrói todos os dons sobrenaturais.”]; arrepende-te mais porque ofendeste a Cristo que por ti nasceu e foi crucificado; arrepende-te muitíssimo porque desprezaste a Deus, cuja majestade desonraste transgredindo as suas leis, cuja verdade negaste, cuja bondade afrontaste. Pelo pecado desonraste, desfiguraste e transtornaste toda a criação; porque pela rebeldia contra os divinos estatutos, mandamentos e juízos, abusaste de todas as coisas que, segundo a vontade de Deus, te deveriam servir: as criaturas, os merecimentos alcançados, as misericórdias de Deus, os dons gratuitamente outorgados, e o prêmio prometido.

Depois de atentamente considerar tudo isto, toma luto como por teu filho único, chora amargamente (Jer. 6, 26); Faze correr uma como que corrente de lágrimas de dia e de noite; não te dês descanso algum nem se cale a menina dos teus olhos (Lament. 2, 13).

Deseja, contudo, os dons divinos, elevando-te, pela chama do divino amor, até Deus, o qual tão pacientemente te suportou nos teus pecados, tão longanimemente esperou, tão misericordiosamente te reconduziu à penitência, concedendo-te o perdão, infundindo-te a graça, prometendo-te a coroa, enquanto de tua parte Lhe ofertaste — ou antes d’Ele recebeste para Lhe ofertar — o sacrifício de um Espírito atribulado, de um coração contrito e humilhado (Salmo 50, 19) por meio de sentida compunção, confissão sincera e satisfação condigna.

Deseja muito a benevolência divina por uma larga comunicação do Espírito Santo, deseja mais a semelhança com Deus por uma imitação exata de Cristo crucificado, deseja muitíssimo a posse de Deus por uma visão clara do Eterno Padre, para que na verdade cantes com o Profeta: “A minha alma arde em sede por Deus forte e vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus?” (Salmo 41, 3).

IV

Ora, para conservar em ti este espírito de temor, de dor e de desejo, exerce-te externamente numa perfeita modéstia, justiça e piedade, afim de que, segundo escreve o Apóstolo, “renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivas sóbria, justa e piedosamente neste século” (Tito, 2, 12).

Exerce-te numa perfeita modéstia para que, segundo a doutrina do Apóstolo, “a tua modéstia seja conhecida por todos os homens” (Filipenses, 4, 5). Exerce-te primeiro na modéstia da parcimônia no comer e vestir, no dormir e vigiar, no recreio e no trabalho, não excedendo a medida em coisa alguma.

Depois exerce-te na modéstia da disciplina, com moderação no silêncio e no falar, na tristeza e na alegria, na clemência e no rigor, conforme as circunstâncias o exigem e a sã razão o prescreve.

Finalmente, exerce-te na modéstia da civilidade, regulando, ordenando e compondo as ações, os movimentos, os gestos, as vestes, os membros e os sentidos, conforme o requer a educação moral e o costume na ordem, para que merecidamente pertenças ao número daqueles aos quais o Apóstolo diz: “Faça-se tudo entre vós com decência e ordem” (I Cor. 14, 40).

Exerce-te também na justiça para que te sejam aplicáveis as palavras do Profeta: “Reina por meio da verdade, da mansidão e da justiça” (Salmo 44, 5).

Na justiça íntegra por zelo pela honra divina, por observância da lei de Deus e por desejo da salvação do próximo.

Na justiça regulada pela obediência aos superiores, pela sociabilidade aos iguais, pela punição das faltas dos inferiores.

Na justiça perfeita, de forma que aproves toda a verdade, favoreças a bondade, resistas à maldade tanto no Espírito, como nas palavras e obras, não fazendo a ninguém o que não queres que te façam, não negando a ninguém o que dos outros desejas, para que imites com perfeição aqueles a quem foi dito: “Se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus” (Mateus 5, 20).

Finalmente, exerce-te na piedade, porque, como diz o Apóstolo, “a piedade é útil para tudo, porque tem a promessa da vida presente e futura” (I Tim. 4, 8).

Exerce-te na piedade do culto divino recitando as horas canônicas atenta, devota e reverentemente, acusando e chorando as faltas quotidianas, recebendo a seu tempo o Santíssimo Sacramento e ouvindo todos os dias a santa missa.

Na piedade, por meio da salvação das almas, auxiliando ora por freqüentes orações, ora por instrutivas palavras, ora pelo estímulo do exemplo, para que quem ouve diga: “Vem!” (Apoc. 22, 17). Isto, porém, cumpre fazer com tanta prudência, que a própria alma não sofra prejuízo.

Na piedade, por meio do alívio das necessidades corporais, suportando com paciência, consolando amigavelmente, ajudando com humildade, alegria e misericórdia, para desta forma cumprires o mandamento divino enunciado pelo Apóstolo: “Carregai os fardos uns dos outros, e desta maneira cumprireis a lei de Cristo” (Gal. 6, 2).

Para praticares tudo isto, o meio melhor, eu o creio, é a lembrança do Crucificado, afim de que o teu Dileto, como um ramalhete de mirra (Cântico dos Cânticos, 1, 12), descanse sempre junto ao teu coração.

Isto te queira prestar Aquele que é bendito por todos os séculos dos séculos. Amém.

(Traduzido do latim por um frade da Ordem Franciscana  e editado pela Editora Vozes, Petrópolis, 1921. Segundo o prólogo do códice, conservado no Vaticano, São Boaventura escreveu este tratado para a princesa Branca, filha de São Luiz, rei da França, casada com Fernando, filho de Afonso X da Espanha.)

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